AGENTE DUPLO | A FICÇÃO E A REALIDADE DE UM LAR DE IDOSOSA
- raianecfferreira
- 20 de ago. de 2022
- 4 min de leitura

A terceira idade muitas vezes é negligenciada e pouco explorada na indústria cinematográfica. É mais comum os vovôs e vovós aparecerem em filmes de comédia ou dramáticos. Eventualmente podem compor filmes de ação com teor cômico e romance também. Mas vamos combinar, é sempre gostoso ver as aventuras dos velhinhos, afinal, todos naturalmente caminhamos para chegar nesta fase da vida. E é nesse clima que neste vídeo iremos falar sobre o comovente filme “Agente duplo” (2020), da diretora chilena Maite Alberdi.
Agente Duplo é um documentário que brinca com aspectos ficcionais para contar uma história divertida e tocante sobre a terceira idade. De início, temos uma sinopse interessante, no qual o detetive Rômulo é contratado por uma misteriosa mulher para investigar como sua mãe está sendo tratada na casa de idosos onde vive atualmente. O homem decide contratar um senhor entre 80 e 90 anos, com expertise em aprender a mexer em equipamentos tecnológicos simples, e que possa se infiltrar no asilo. Eis que aparece Sérgio, um senhorzinho recém-viúvo de 83 anos que nunca tinha sido detetive na vida, mas disposto a colaborar com o serviço.
Assim o velhinho é treinado para manusear equipamentos de espionagem e mandar evidências e relatórios diários pelo celular. Depois, ele é encaminhado à casa de repouso para iniciar sua missão. No local, ele começa a se aproximar de alguns moradores e presencia situações lastimáveis na qual alguns ali se encontram. E é aí que o gênero documental se manifesta mais diretamente na obra.
Para mim, este é um dos mais criativos e sensíveis documentários que já vi. Alberdi usa a figura do agente duplo como dispositivo para mostrar o dia a dia dos idosos que vivem esquecidos pela família no asilo. Um espaço cujo foco recai principalmente nas mulheres. E esta é uma escolha interessante pelo fato de se tratar de um tema delicado, sobretudo em se tratando de se mostrar o duro fim da vida daqueles que são abandonados por causa de sua idade.
No contraste com o peso do tema dessa estória, o filme possui uma narrativa dinâmica. Uma característica que é ressaltada no início do filme ao vermos o modo como Sérgio, ao longo de sua missão, tem facilidade de se interagir com os demais personagens. É divertido ver os desafios que ele passa para usar os dispositivos tecnológicos de forma discreta e efetiva. O que nem sempre acontece. Além desse distinto protagonista, a obra conta com outras figuras cativantes. Das figuras que aparecem na trama e fazem amizade com Rômulo, rapidamente criamos um forte senso de empatia por todas elas. Essa é uma construção que se reforça principalmente pelos aspectos reais e naturalistas com que as fragilidades desses anciões são representadas, seja busca por um companheiro ou pela falha de memória.
É refletindo sobre isso que a produção desafia a percepção do espectador e nos propõe algo que talvez não se apresente como uma uma resolução possível. A dinâmica de representação da realidade perpassa aqueles personagens, até que certo ponto não conseguimos definir o que é ficção ou realidade. Outras questões vão se sobressaindo de forma natural e fluida e percorrem outros caminhos que ali foram surgindo. E surge então a qualidade intrínseca do cinema, principalmente do documentário, a de revelar um aspecto da realidade, e de propor uma reflexão sobre.
E é através da relação construída por Sérgio com os outros idosos e da solidão semelhante em suas vidas, que está a grande força da obra. No desenrolar do filme, a história do velhinho espião vai se desfazendo, tudo o que seria ficcional se reconfigura abrindo espaço para as evidências do documentário que se destacam cada vez mais. É madura a escolha por deixar aparecer a equipe técnica responsável pela filmagem no asilo à mostra. É uma decisão que evidencia a estranheza de seus moradores com a presença da câmera em alguns momentos. Por mais que a história do agente escondido no asilo não pareça tão grandiosa por não haver um objetivo interessante, isso não tira a força do longa, já que temos a ciência que se trata de um filme. E tudo é colocado de forma lúcida e sensata para que seja compreendido de que estamos vendo a um filme, que as pessoas ali e suas situações são reais.
E é por este fato que Agente Duplo se trata de uma obra linda e sensível que nos propõe uma experiência de desconstrução do olhar fílmico e nos instiga a enxergar de perto uma realidade triste na qual muitos idosos são reféns. Então, de que vale a tal filha contratar um detetive para investigar se sua mãe estaria sendo bem tratada no asilo, se na verdade a própria filha poderia ir lá visitá-la. Então aqui vale uma tomada de consciência na qual devemos nos perguntar: que mundo é esse em que a terceira idade é descartada totalmente? Será que gostaríamos de sermos deixados de lado quando estivermos em nossa maturidade? Cabe a cada um refletir sobre isso.
Título original: El Agente Topo | Direção: Maite Alberdi | Ano: 2020
Comments