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A BELA E OS CÃES | UMA DESCONFORTÁVEL CAMINHADA PELA JUSTIÇA


A violência no mundo, apesar de dura na vida real, é um potente gancho temático para a problematização de questões pelo cinema. O recorte feito pela realidade que aparece na televisão nos mostram diversas faces duras na construção de um cotidiano onde viver é perigoso. Todos estamos expostos a esse ambiente violento e imprevisível. Para as mulheres, essa é uma ameaça que se materializa independente da cultura de um país. Os filmes são uma importante ferramenta na ilustração e reflexão de momentos complexos da vida em sociedade. Por isso a importância de falarmos de obras que encaram criticamente a dura realidade vivenciada pelas mulheres no mundo todo. E desta vez iremos falar sobre o longa “A Bela e os Cães” (2017) da diretora tunisiana Kaouther Ben Hania.


Em “A Bela e os Cães” acompanhamos Mariam em uma jornada árdua e angustiante em sua busca por ajuda e amparo.Tudo começa quando a jovem sai à noite com as amigas para uma festa e lá conhece Youssef. Os dois saem do local e ela é violentada por um grupo de homens, depois disso, decide denunciar a violência. A decisão da personagem não ocorre sem que ela tenha de passar por inúmeros obstáculos para provar o crime por ela sofrido.


No trajeto aparecem inúmeros personagens que reagem de formas diferentes ao ocorrido. Alguns parecem querer ajudar em certo momento, mas não se mostram tão receptivos em outros instantes. A indiferença das autoridades, a violência psicológica e física por que Mariam passa durante todo o filme faz com que os 100 minutos de duração do longa, que subdivididos em nove longos segmentos, soem como uma espécie de soco no estômago do espectador. Os movimentos de câmera, ângulos, cenário e som, faz parte de uma decisão estética para a obra transmitir essa sensação.


O enredo já mostra que aquilo o que a diretora propõe, é, não só presenciarmos, mas sentirmos na pele aquilo que a protagonista vivencia. A dinâmica das cenas e as escolhas estéticas assumidas pelo filme garantem uma experiência que é desconfortável, mas que ao mesmo tempo nos coloca frente a todas as injustiças e desafios que uma mulher vítima de violência pode passar ao querer denunciar algum tipo de agressão vivida. Os longos planos sequências, também segmentados em nove diferentes planos, são um artifício usado para garantir um aspecto naturalista na obra, acentuando mais os aspectos reais dos acontecimentos.


O tempo experimentado por Mariam é o da “vida real”. Logo, é como se a montagem assinada por Nadia Ben Rachid evocasse essa sensação de uma realidade transposta para a ficção a partir de uma temporalidade do real. O looping de opressão que a jovem moça passa ao longo de uma noite inteira entre agressões, indiferenças, deboches, retratam essa limitação das opções que Mariam tem de obter justiça e também reconfigura essa inacessibilidade de uma justiça distante. Afinal ela foi vítima de um ato violento e não sabe como proceder, uma vez que aqueles que deveriam prestar ajuda, na verdade, a julgam e a maltratam, realimentando todo um sistema de opressão contra a vida feminina.


Não é toa que o medo seja um dos traços mais visíveis da protagonista. Uma temeridade de tudo o que possa vir no seu caminho. Medo de revelar o estupro, medo de ser julgada pelos seus parentes e conhecidos, o que a leva a encarar toda violência externa de forma solitária. A sensação é de que ela não pode confiar em ninguém no seu entorno. Nem mesmo as mulheres do seu círculo social ou aquelas que cruzam seu caminho se sensibilizam com sua dor, comportamento nítido de uma sociedade machista, hipócrita, dividida.


É compreensível que a carga dramática proposta pelo roteiro e pela direção venha com o objetivo de chocar o público, chamando atenção para uma realidade. Porém, a trama mostra perceptíveis traços de subdesenvolvimento. Os inúmeros diálogos durante o filme muitas vezes soam superficiais e enfraquecem o componente dramatúrgico do longa. Da mesma forma, os personagens são desenvolvidos de forma confusa e estereotipada, o que nos faz lembrar bastante da lógica simplista utilizada nas narrativas de novelas, por exemplo.


Os homens na história são vilões e representados de forma plana e caricata. São intimidadores, passivo-agressivos, intolerantes, violentos e superficiais. Esta forma de composição chega a ser cansativa pela repetição de uma atuação usualmente exagerada e que se utiliza bastante de diálogos clichês. Uma estrutura que domina a maior parte das cenas, enquanto a protagonista se mostra pequena e refém das ações destes repugnantes.


Por mais que a personagem principal seja construída de forma contraditória, esta contradição é justificada pela confusão interna que a moça está passando, pois além de sofrer a violência, ela ainda precisa lidar com a bagunça a o seu redor. Há momentos em que até consegue se destacar como agente da ação, mas estes momentos não se sustentam por muito tempo, já que a predominância masculina se sobressai continuamente. Esse é um tipo de ruído que outros trabalhos como O Piano (1993) ou Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019), não cometem. As mulheres, aqui, são o destaque e a razão de ser do argumento do filme em si.


O grande objetivo do filme de Hania, a meu ver, é mostrar os desafios que mulheres passam ao denunciar um abuso. Pelo medo da exposição, muitas desistem de denunciar e afundam no desamparo de todo um sistema social que dá vantagem ao sujeito masculino agressor e que julga a vida feminina por querer exercer seus direitos de viver, amar e de ser quem são.


Esta é uma reflexão muito válida, já que exprime uma realidade universal na qual o feminino é vítima, porém, em A bela e os cães o tema por si só não foi o suficiente para fazer do filme uma obra incrível. Há uma porção de outros fatores que devem ser levados em conta quando se constrói uma obra fílmica, e é por isso que, para mim, o trabalho não atingiu as expectativas desejadas.



Direção: Kaouther Ben Hania | Ano: 2017

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