A concepção histórica dos sexos feminino e masculino podem ser entendidas como elaborações culturais. Para a mulher, o corpo ganha destaque maior, vinculando-se a natureza, a fragilidade e a reprodução. Já o homem estaria ligado a elementos da razão e da cultura. Estas questões foram refletidas por teóricos e teóricas como Michel Foucault, Simone de Beauvoir, Margareth McLaren, Judith Butler e muitos outros que se dedicaram em entender a influência que as construções sociais possuem na concepção do ser. Com esta breve introdução, iremos hoje refletir alguns aspectos do feminino e da maternidade através da obra "A Filha Perdida" (2021), dirigido por Maggie Gyllenhaal.
"A Filha Perdida" marca a estreia de Gyllenhaal na direção de um longa-metragem. No filme, que é baseado no romance homônimo de Elena Ferrante, acompanhamos a história de Leda (Olivia Colman na versão mais velha, e Jessie Buckley na jovem), uma tradutora de meia-idade que está de férias sozinha em uma ilha grega. Em seus primeiros dias no local, ela conhece uma grande família de Nova Iorque que parece ocupar todos os espaços daquele pedaço do litoral grego. Porém a mulher se interessa particularmente por Nina (Dakota Johnson) e sua filha pequena. A presença das duas aciona lembranças de um passado vivido pela protagonista.
Para ilustrar essas memórias, o filme utiliza bastante o recurso dos flashbacks que mostram todos os conflitos dessa vida anterior de Leda. Toda essa vida pregressa gera muita culpa e questionamentos na personagem. Essa crise é retratada e percebida muito a partir do modo como a fotografia dá a ver esse aspecto orgânico de narrar a crise que atravessa a protagonista, assim como dar o tom intimista que a história carrega. Desta forma, a diretora consegue mapear o percurso da confusão interna de uma mulher que nitidamente não se enquadra nas exigências de uma sociedade patriarcal.
Com Nina não é diferente. Ela também sente que as obrigações de mãe lhe são um grande peso. Diante do desaparecimento de sua filha, a jovem se desespera pelo medo de não achar a menina, mas também se preocupa com o que seus sogros vão dizer sobre ela. Um tempo depois, a garota é encontrada por Leda, que a devolve mas pega escondido sua boneca. A falta do brinquedo gera uma crise na criança, conturbando as férias daquela família. No núcleo dessa situação, estão as pressões que a mulher contemporânea sofre na sua condição de figura múltipla: seja a partir da maternidade ou do compromisso matrimonial.
Por isso o filme se assemelha a uma análise de personagem, já que o público possui o ponto de vista da protagonista. Acompanhamos suas questões, traumas, culpas e desejos. E aos poucos o longa vai descortinando a história de Leda, mostrando um passado cheio de turbulências. Quando jovem, ela precisava conciliar seu trabalho com o papel de mãe de duas crianças pequenas. Além de lidar com a falta de colaboração e compreensão do marido. Cansada de seus interesses serem diminuídos, a pesquisadora opta por se concentrar em sua carreira, abandonando suas filhas com o pai por um longo período.
É fato que ter filhos é uma responsabilidade a qual os pais devem com ela arcar. Qualquer tipo de abandono pode ser considerado irresponsável e imaturo. Porém, é importante considerar que vivemos em uma sociedade machista em que o peso da criação só é atrelada à mãe, sendo o pai pouco cobrado para a tarefa de cuidar dos filhos. Não podemos negar que as escolhas de uma figura como Leda trouxe consequências para todos, principalmente para ela mesma, já que precisa lidar com uma culpa íntima, mas que é na sua gênese carregada por construções sociais do nosso meio.
Lembremos então da conhecida fala de Simone de Beauvoir: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. A passagem da filósofa esclarece a ideia de que o sexo feminino é uma construção da cultura através do tempo e dos contextos sociais. Esse é um pensamento reforçado por Judith Butler ao dizer que estas formulações existem por meio de atos corporais que são importantes na construção da identidade. Ela entende a maternidade, assim como o gênero e a sexualidade, como performance. O que consistiria em atos do corpo responsáveis pela construção do sujeito e o estabelecimento de formas possíveis de se adequar num papel.
Porém, é preciso compreender que o ser mulher não se resume somente a aspectos corporais, como a gestação, a feminilidade, delicadeza, a sexualidade e beleza, ideias muitas vezes banalmente apropriadas pelos grandes meios de comunicação, por exemplo. Retornando à Beauvoir em "O Segundo Sexo" (1967), entendemos que os processos orgânicos vividos pelo corpo feminino são definidos de uma forma que o resultado é a exclusão fundamental do espaço público das mulheres, assumnido somente um espaço privado.
Pensando sobre isso, é bastante rico quando uma obra cinematográfica consegue gerar sentidos e reflexões em cima de conceitos tão enraizados na sociedade. Creio que muitos dos espectadores possam vir a julgar as escolhas de Leda. E de fato há sim uma naturalização deste comportamento pelo fato da maternidade carregar ideias bem demarcadas durante séculos.
Porém, devemos recorrer a uma reformulação daquilo que foi nos ensinado antes. E compreender que a mudança externa parte de uma simples mudança de pensamento. Esta parece uma preocupação da diretora, que não oferece respostas ou ideias pré estabelecidas, mas levanta questionamentos e problemáticas sobre uma realidade do feminino, onde a diretora reconhece seu lugar de fala.
E é por estes e de outros aspectos é que "A Filha Perdida" é uma obra singular, intrigante e ousada. Que nos estimula a refletir sobre um confronto com caracterizações impostas sobre o que a maternidade pode ser e de como as mulheres devem agir diante dela.
Título original: The Lost Daughter
Diretora: Maggie Gyllenhaal
Ano: 2021
País: Estados Unidos, Reino Unido, Israel e Grécia
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