A violência no mundo é uma realidade estabelecida no dia a dia de muitos países ao redor do mundo. Em todos os continentes, ela está presente em diversos graus e peculiaridades. E no cinema não é diferente. Temos disponíveis diversas obras cinematográficas que abordam esta mácula humana em níveis distintos. O cinema industrial utiliza este aspecto, muitas vezes, como um atrativo para segurar seu público. Porém, há histórias que ressaltam o quanto ela é prejudicial na vida de muitos, sobretudo para as mulheres. É partindo de questões como essa que iremos conversar um pouco sobre o longa A Noite do Fogo (2021).
Dirigido por Tatiana Huezo, A Noite do Fogo é uma adaptação do romance de Jennifer Clement, publicado em 2014. No filme, acompanhamos os moradores de uma vila isolada nas montanhas do México controlada por um cartel de drogas. Lá, as famílias são sujeitas às regras dos traficantes e as meninas são os alvos mais comuns. Nesse contexto, as mães fazem de tudo para proteger as filhas, cortando seus cabelos como meninos e as escondendo em momento de perigo. Esta é a realidade de Ana e suas duas amigas.
As três meninas crescem dentro deste regime opressor, onde não podem demonstrar nenhum tipo de capricho ou comportamentos comuns a garotas da sua faixa etária. Apesar de tudo isso, as jovens vivem sua infância de forma criativa. Se apoderam das casas abandonadas para brincar com mais liberdade, serem meninas de fato. E nesses momentos elas extraem toda a magia e alegria que esse período da vida pode lhes proporcionar.
Porém, tudo na vida das garotas aspira à sobrevivência. Até certas brincadeiras acionam este extinto, como ficar imóvel, prender a respiração, tentar adivinhar o pensamento uma da outra, o que estão fazendo ou pensando. Por mais que tudo isso seja estabelecido por meio de uma dinâmica lúdica e dentro de um contexto de suposta liberdade, há todo um clima que indica algum perigo.
Fora dele, no entanto, há uma realidade dura para todas as garotas. A começar pelo medo e pressão que as mães sofrem. Elas precisam trabalhar para pagar uma certa quantia ao cartel que comanda a região onde as personagens vivem. Tudo isso é feito na esperança de conquistar alguma imunidade. Em paralelo a isso, os pais se dedicam a ensinar suas filhas a fugir daqueles que tentam escravizá-las ou torná-las fantasmas. Mas a atmosfera opressora as cercam muito fortemente. Não ser um alvo se torna algo inevitável.
A narrativa acompanha Ana e suas amigas na passagem da infância para a adolescência. E é curioso perceber as mudanças que acontecem neste tempo. Mudam seus corpos, os interesses, as percepções do mundo, porém as mulheres ainda continuam a viver na mesma situação precária naquele local. Sem perspectiva de melhora e nem liberdade de viver uma vida livre do medo e da violência cotidiana.
Ainda que a opressão desse cotidiano esteja institucionalizado no campo do conceito do filme, é nítido o comando feminino da narrativa de modo geral. Os homens só existem como aqueles que estão distantes trabalhando ou aqueles que exprimem fúria quando aparecem. E esta violência é representada pelos olhos de uma jovem que não entende muito bem os motivos dos ataques. Essa é uma falta de clareza que também é partilhada pelo olhar do espectador, que também não tem certezas sobre isso. De modo que acompanhamos de uma certa distância os eventos que moldam aquela realidade.
Este é um aspecto interessante desta obra porque diante de muitas abordagens sobre os grupos organizados no México pelo cinema comercial, Huezo nos introduz a história através de uma construção pela ausência. Ela não revela completamente os rostos dos agressores, nem daqueles que passam nos helicópteros que liberam gás venenoso na região onde as personagens vivem. Em muitos momentos, o público é levado a interpretar partindo de suas experiências pessoais ou referências anteriores para construir os sentidos que as imagens sugerem.
O estranhamento está sempre presente, pois os elementos narrativos carregam um tom antinatural, algo que se aproxima do místico ou mágico. Estes indícios se evidenciam, por exemplo, nos desaparecimentos das colegas de sala de Ana, nas casas sendo abandonadas e na enorme fogueira que se forma em noites angustiantes.
Para além das ações dos personagens e das construções dramáticas da trama, a atmosfera densa existe muito mais nas ambiências do que nos próprios acontecimentos da vila. O próprio espaço geográfico carrega este caráter, contendo muitas informações e significados importantes para a história para além dos diálogos. É desta forma que a diretora retrata o medo e a opressão, por exemplo. Através dos elementos de cada cena e dos lugares por onde as meninas perambulam.
A Noite do Fogo é um trabalho tocante e maduro que procura cativar e ao mesmo tempo proporcionar uma experiência fílmica ao seu público. Ele aponta reflexões sobre a realidade e a representação, a inocência e a maldade. Tudo isso dentro de uma narrativa naturalista com traços fantásticos e que aborda a violência sem grafismos ou exageros. É um filme que lida muito bem com índices de um cinema mais direto, sem apelar para qualquer gratuidade que os traumas e os dramas dessas figuras podem anunciar. Preferindo então, uma linha imaginativamente possível quando a própria realidade parece irracional e incoerente.
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