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A VIDA INVISÍVEL | O FEMININO E O SOFRIMENTO


O conceito estabelecido pelo escritor Joseph Campbell a partir do livro “O Herói de Mil Faces” de 1989, a jornada do herói é constantemente usada em grandes obras e costuma gerar grande fascínio aos amantes da literatura e das artes do vídeo em geral. As aventuras dos heróis são de fato empolgantes, mas, para além das narrativas dos vencedores existem dramas que recorrem às dores e à injustiça para chamar atenção do público. Sabemos que o sofrimento social realmente faz parte da vida humana, mas de onde vem este gosto por assistir o martírio na história da humanidade? Por que será que são mulheres os seres de maior tendência ao sofrimento incorporado nas narrativas cinematográficas? Neste vídeo, vamos refletir sobre isso através do filme “A Vida Invisível” (2019), do diretor e roteirista Karim Aïnouz.


Ao ser questionado pela crítica Carol Lucena sobre o porquê do sofrimento das mulheres ser tão atraente para os homens, o diretor Karim Aïnouz responde que o sofrimento de modo geral lhe é interessante, pois o público não se interessaria em ver um filme cujos personagens sempre estejam felizes. Porém a questão aqui não é sobre a felicidade no cinema, mas sim sobre as construções dramáticas dos personagens para compreender por que razão eles (neste caso, elas) têm que sofrer quase o filme todo.


A Vida Invisível (2019) se passa na década de 1950 na cidade do Rio de Janeiro e conta a trajetória sofrida de duas irmãs, Guida, uma jovem que está além do seu tempo, quer viver o amor e construir a vida a seu modo, e Eurídice, uma doce menina que ama tocar piano. Apesar das diferenças, as duas possuem um laço muito forte mas que é comprometido pelas injustiças do mundo machista.


Ambas são ensinadas a obedecer as regras impostas pelo pai com resignação, mas este controle não satisfaz aquilo que elas desejam para suas vidas. Em busca de viver o amor, Guida acaba engravidando na adolescência e é expulsa de casa pelo pai, assim como é abandonada pelo seu então companheiro com quem teve um filho. Em uma outra perspectiva, Eurídice continua a viver as opressões de sua família, sendo obrigada a largar seu sonho de ser pianista para viver uma vida de imposições em um casamento que pouco lhe agrada na vida.


Tomando isso como uma potência da obra, o diretor parte da construção da identidade feminina explorando a ideia da invisibilidade e do sofrimento escondido pelas formas opressoras da sociedade para com elas. Algo que perdura ainda hoje. Abre-se então reflexões de como a experiência da sonegação demarca a criação de identidades que influenciam questões específicas do feminino, e de como o cinema se alimenta desta para garantir olhares múltiplos para a realidade das mulheres.


O controle é um elemento muito presente na trajetória das irmãs, assim como a opressão mascarada que interfere nos seus sonhos e naquilo que elas poderiam a vir construir. É visível a força destas mulheres, assim como também é notável a ideia de que elas nunca sucumbem diante das tormentas das suas linhas de vida. As irmãs suportam de tudo e apenas sobrevivem buscando ressignificar as experiências que lhes são permitidas, assim como muitas mulheres brasileiras que veem e viram suas vidas sendo controladas por outros.


Mas aqui também temos a esperança como uma potência que une Guida e Eurídice, mesmo diante de muitas mentiras que são ditas para evitar o reencontro entre as duas personagens. Figuras que passam a vida inteira pensando uma na outra e fabulando como seria esse reencontro. Uma impossibilidade que se materializa na própria condição de Guida, que se assemelha a uma espécie de fantasma daquela família e do lugar em que Eurídice se encontra na sua delicada posição de permanecer sob o julgamento, controle e alienação imposta por parte da sua família.


É interessante como o filme aposta na sobrevivência como uma espécie de condição do feminino, algo que seria uma marca da posição dessas mulheres no mundo, ainda que entendamos a existência de outras abordagens que foram deixadas de lado pela direção do filme. Na lógica aplicada por Aïnouz, sua ênfase recai muito mais nas construções das cenas de maior peso dramático. Enquanto que nas cenas de menor escala dramática percebemos um menor investimento seja em de tempo de duração dos eventos quanto no desenvolvimento da dinâmica dramatúrgica em si".


Por exemplo, a cena obscura da noite de núpcias é muito mais elaborada esteticamente, enquanto o diretor filma a de Eurídice ao piano de forma antiquada. O fato de nunca vermos Gilda se divertido de algum modo talvez seja a melhor representação desse intervalo de felicidade suprimido à personagem. Nunca a vemos durante uma festa, apenas seu retorno para casa, por exemplo.


O filme também traz uma carga sexual que surge tanto nas relações cotidianas pessoais, quanto na prática da prostituição, novamente enfatizando a brutalidade ao corpo feminino. O fato de o filme não conseguir ou desejar trabalhar os limites entre o abuso e o consenso nos parece algo bastante problemático. A impressão que temos é a de que sempre estamos vendo um abuso em algum nível. Desta forma, evitando os momentos alegres das personagens, o diretor acaba as transformando em arquétipos resumindo-as ao estereótipo de mulheres fortes pela característica de suportar as dores, os abusos e as aflições de uma vivência em sofrimento contínuo. Porém, será que é somente isso que as validam como figuras fortes? Será que não são somente figuras que foram engolidas pelo patriarcado e que perderam em si mesmas em algum ponto das suas próprias linhas temporais?


É um equívoco resumir o feminino cinematograficamente pela via exclusiva da vitimização, da aplicação da dor e da tragédia. Por que a força feminina tem que vir apenas dos desafios de sobrevivência a um regime opressivo? Eu, como mulher, não quero ver a representatividade do feminino pelo instinto de sobrevivência aos ataques por elas sofridos. A narrativa da mulher em nosso tempo precisa superar a ideia recorrente da preservação da sua vida apenas. Eu quero vê-las sorrindo, dançando, amando e sendo retratadas de forma livres de todo e qualquer tipo de julho, como devem ser.


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