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BLONDE | O SOFRIMENTO FEMININO E O FETICHE MASCULINO


Os signos do cinema Hollywoodiano estão carregados da ideologia patriarcal. Um pensamento que sustenta as estruturas sociais e constrói a mulher de tal maneira, para servir às necessidades do inconsciente de uma sociedade baseada nos valores do masculino. E nos anos de 1970 e 1980 a teoria do cinema presenciou o surgimento de posições que focaram no olhar dentro da relação espectador-filme.


Diante das reflexões sobre o olho no cinema, surgiu a teoria feminista que usou deste pensamento, junto da psicanálise, para indagar o modo como o inconsciente da sociedade patricarcal estruturou o cinema. Uma destas teóricas é Laura Mulvey. Seus estudos foram pioneiros na investigação relacional entre o olhar masculino e o corpo da mulher. É diante deste pensamento que iremos agora refletir sobre a construção de Marilyn Monroe no filme Blonde (2022) dirigido por Andrew Dominik, e disponibilizado pela Netflix.


Andrew Dominik é conhecido pelo seus famosos documentários e filmes autobiográficos premiados e bem vistos pela crítica. Seu rigor estético ao construir uma narrativa fílmica certamente chama atenção, um grande exemplo é o premiado “O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford” (2007) e o recente documentário “This Much I Know to Be True” (2022). Com base nisso, muitos estavam curiosos para ver como o diretor iria construir a trajetória de Marilyn Monroe, da infância ao estrelismo.


É importante informar primeiramente que Blonde não tem o objetivo de desvendar quem foi Norma Jeane, ou Marilyn Monroe. O diretor faz uma mistura dos acontecimentos da vida da artista com uma versão fictícia dela. Afinal, muito daquilo que se fala sobre esta bela mulher, são apenas invenções da indústria e do imaginário coletivo, assim como a própria Marilyn inventava a si mesma para sobreviver naquele meio.


Em Blonde, acompanhamos Norma desde sua infância conturbada, com uma mãe instável e um pai que só existe em sua mente. Diante das loucuras de sua responsável, e a identidade desconhecida do pai, Norma ficou na responsabilidade de um casal, mas logo em seguida foi para um orfanato, o que foi um dos momentos mais conturbados de sua vida. O filme utiliza a figura do pai desconhecido ao longo de toda a sua duração. Como sua mãe dizia que seu progenitor trabalhava com cinema, desde criança ela imaginava reencontrá-lo no meio artístico.


O passado de transtornos mentais da família de Marilyn também é utilizado na obra com bastante ênfase no início do filme. E isso ajuda a entendermos certas decisões adotadas pelo diretor. Todo o formalismo estético do longa é uma tentativa de imular o olhar da jovem, ou compartilhar seus sentimentos com o público. Em muitos momentos é quase como se entrássemos na cabeça de Norma e presenciássemos seus pensamentos, sonhos e memórias.


O uso do preto e branco, assim como o da luz e sombra acentua aspectos da mente conturbada da personagem. A câmera nervosa e a montagem ágil presentes nos instantes de maior perturbação da trama são responsáveis por deixar uma atmosfera de dúvida. O que vemos é real ou não? É como se a própria Marilyn não conseguisse distinguir a realidade da irrealidade na sua vivência. Um estado também experimentado pelo espectador em algum sentido. Já os movimentos de câmera são pensados para gerar um fluxo entre as sequências, criando uma unidade bastante prolongada. Dormindo ou acordando, ainda temos a sensação de continuidade de ação.


Parece um filme bem pensado esteticamente, porém, precisamos ressaltar seu caráter hiper dramatizado cuja protagonista sofre um martírio do começo ao fim durante duas horas de duração. Acompanhamos uma artista que, apesar da grande fama e sucesso, sofria de depressão, solidão e síndrome do pânico. Sua descrença na capacidade de encontrar algum dia um amor verdadeiro enquanto fosse ela mesma ilustrava isso. Como reflexo direto disso, cria uma persona sexy e exuberante como sendo a única possibilidade de ela ser amada. Ela era o que se desejava dela. Sua beleza agrada os homens e seu carisma faz as mulheres desejarem ser como ela.


A performance de Ana de Armas também ajuda a modelar essa aura de forte impacto contida no filme. Ela consegue expor todas as nuances, desde as ambições às fragilidades de Marilyn, mesmo perante a um filme que ignora muitos aspectos desta figura. É lamentável, no entanto, ver Ana sexualizada, assim como Norma em toda sua carreira. É quase que nulo os momentos em que não esteja bela e sexy, mesmo em cenas de angústia, medo e sofrimento, sempre temos a moça bem maquiada, bem vestida e com uma tristeza sedutora. Esse é um quadro rascunhado principalmente pelo exercício do olhar masculino dos realizadores por trás das câmeras. As imperfeições de uma "mulher ícone" como aquela passam a não ser toleradas, nesse sentido.


Aqui não temos um filme de uma mulher em sofrimento, temos o martírio de uma mulher de forma estilizada e modulada por homens através da linguagem cinematográfica. É como se o sofrimento de Monroe fosse um fetiche masculino. No filme “Sete Dias com Marilyn” (2011) do diretor Simon Curtis, o personagem Sir Laurence Olivier (Kenneth Branagh) ao conversar com o protagonista Colin (Eddie Redmayne), fala sobre como Marilyn é grandiosa, e de como talvez esta grandiosidade seja a origem de sua profunda infelicidade.


“De acordo com Laura Mulvey a erotização da mulher na tela acontece através do modo como o cinema se estrutura em torno de três olhares explicitamente masculinos”: o olhar da câmera, o olhar do personagem dentro da narrativa e o do espectador masculino. Mas a erotização por si só, pode até não ser tão grave. O problema são os elementos de imposição e posse imposta pelo olhar masculino heteronormativo.


Marilyn Monroe é um exemplo da atriz que perdeu sua individualidade para a indústria. Dada essa construção, essas figuras fictícias se colocam diante do olhar dos homens a partir da expressão da sua sexualização, um campo ambíguo e muitas vezes irredutível da afirmação do poder feminino.


Ela é construída para ser olhada. Suas performances são, na maioria, cômicas e representações de estereótipos sexuais dominantes. Mas Norma Jeane não se resume a Marilyn, ultrapassando, logo, a figura mítica da atriz. Esse é um estado que representação nenhuma poderia alcançar, seja por filme algum.


Mas o grande equívoco neste filme foi Dominik compor sua obra com uma sucessão de eventos chocantes. Suas supostas "imagens ousadas", extrapolam as linhas divisórias entre o incômodo reflexivo e o gratuito. Algo que beira o insuportável. Apesar de todo seu potencial, no fim das contas, Blond acabou se tornando uma obra torturante e desrespeitosa não só para com Marilyn, mas para com todas as mulheres.


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