É muito comum haver filmes que fazem referência ao cinema de forma romântica. “Dançando na chuva”, “A Rosa Púrpura do Cairo”, “Cinema Paradiso”, e “O Artista”, são obras que agradam os amantes da cinematografia por ressaltar a grandeza da sétima arte por meio de tudo o que ela mobiliza através de operações de imagem e som. Porém existem outros filmes metalinguísticos que optam por trazer uma visão madura e realista do cinema.
É o caso de "Chan-sil sortuda" da diretora coreana Kim Cho-hee. Um filme que impressiona por abordar a realidade cinematográfica com delicadeza e lucidez.
No longa, acompanhamos Lee Chan-sil, uma produtora de cinema que fica desempregada após a morte do diretor com quem trabalhou durante anos. Percebendo-se sem família e amigos, a mulher se muda para um quarto na casa de uma senhora solitária e começa a fazer faxina no apartamento de uma jovem atriz. Nesta rotina, ela conhece o professor de francês, Kim‑young, que estudou cinema na França mas não encontrou oportunidades na área. Os dois se aproximam e Lee começa a se interessar por ele.
A protagonista viveu sua vida para o cinema, algo que ama muito, mas se esqueceu de que há vida para além do cinema como: construir uma família, fazer amigos sinceros, aprender uma língua nova, aprender um instrumento, dentre outras atividades. A mulher aprende isso de uma forma dura, pois não é fácil arrumar um outro emprego ou namorado com a sua idade. Deste modo, Lee entra em um estado de reflexão sobre aquilo que escolheu fazer de sua vida.
A forma como a direção constrói as situações demonstram o quanto ela tem domínio e convicção do que quer discutir em seu trabalho. Ela brinca um pouco com os elementos dos gêneros cinematográficos como o romance, a comédia, o drama e a fantasia. Nisso, propõe novas estruturas que contradizem a dos filmes hollywoodianos.
O romance, por exemplo, não é colocado como a solução para as angústias da produtora, pois além do envolvimento romântico não ser o foco desta história, a diretora está mais interessada em trazer uma reflexão sobre as escolhas que cada indivíduo faz na vida bem como das construções de vínculos afetivos que contribuem para o crescimento.
A câmera estática, bem como os leves movimentos executados por ela, os planos abertos, as paisagens e os planos contemplativos, ajudam a retratar a rotina da personagem, a monotonia dos dias e sua solidão neste momento incerto de sua jornada. As ilusões e as decepções são uma realidade na trajetória da produtora, já que sua pessoa encontra-se completamente desiludida com o ambiente profissional da sua área de trabalho.
É abordado na trama as formas de relações humanas, algumas superficiais e passageiras, outras naturalmente profundas. Antes da morte do diretor, Lee tinha uma boa relação com a Sra. Park, uma mulher influente no mercado cinematográfico, mas que após o falecimento do cineasta abandona a produtora em definitivo. Porém, através do convívio, a mulher constrói uma bela relação afetiva com a exigente senhora dona do imóvel onde está temporariamente alocada. Talvez sejam estas relações verdadeiras que importam na trajetória de vida de cada um e não por meio de envolvimentos movidos a interesses.
Durante boa parte do caminho ao amadurecimento da produtora Lee, ela se frustra ao buscar soluções externas para suas angústias e incertezas. Só depois de algumas infelicidades, desventuras, conversas e reflexões ela compreende que a resposta para o seu vazio não está fora, nem nos outros, ou sequer no próprio trabalho no cinema e sim em si mesma. Só desta maneira ela poderá encontrar um novo caminho para seguir.
Pautado tudo isso, é no mínimo cativante a forma como Kim Cho-hee propõe uma visão singela e madura da realidade dos profissionais do cinema. Creio que muitos realizadores independentes, independente da sua etnia, que já tenha passado por um desencanto na área, venham a ser identificar com os desafios vividos pela protagonista desta obra. Porém, não é preciso saber de cinema, nem trabalhar no campo para se envolver com os dilemas emocionais da produtora, já que todos estamos sujeitos a passar pelo progresso íntimo ligado a qualquer instância da existência humana.
Direção: Kim Cho-hee
Ano: 2019
País: Coreia do sul
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