A sociedade possui valores morais e religiosos, muitas vezes nos deparamos com rituais, crenças e tradições que parecem distorcidas, ou rasas no que diz respeito ao mundo moderno. Diante deste assunto, Corpo Celeste (2011) de Alice Rohrwacher faz o retrato de uma realidade que não está tão distante do mundo contemporâneo, seja pela relação com a influência religiosa na vida das pessoas ou pelo sentimento antagônico de descrença das novas gerações para com a religião.
Corpo celeste é o primeiro filme de ficção de Alice Rohrwacher mas que já demonstra uma forma própria de olhar e fazer cinema. Acompanhamos Marta (Yle Vianello), uma menina de quase treze anos que volta da Suíça para a cidade natal de sua mãe na Itália. A garota conta, enquanto família, apenas com a mãe, Rita (Anita Caprioli) e a irmã mais velha, Rosa (Maria Luisa De Crescenzo).
O filme possui claramente influências estéticas do documentário, e logo no seu início do filme temos contato com seu tom, através da presença religiosa e a forte influência da igreja católica, com isso, logo nos primeiros dias, Marta é levada a fazer aulas de crisma, com o intúito de se inserir na comunidade, mesmo que ela não entenda muito bem o significado disso.
Marta tem um posicionamento mais crítico e observador, e diferente das demais crianças, ela questionava as crenças religiosas do local, o que justifica a relação conturbada com Santa (Pasqualina Scuncia), mulher responsável por preparar os jovens para a crisma, ou seja, o dia em que vão consolidar sua fé. Santa é uma figura complexa, é rigorosa com as crianças, e insiste que os catequistas decorem os textos sagrados. É uma mulher que vive para a religião, e que possui uma estranha devoção por Don Mario (Salvatore Cantalupo), pároco da pequena cidade, figura influente no local.
No filme, Santa luta para manter a ligação do povo com a igreja, enquanto Don Mario possui preocupações menos espirituais como: Impressionar seus superiores para subir na hierarquia, coletar os aluguéis, e garantir os votos dos fiéis para o seu candidato na próxima eleição. A tentativa de despertar o interesse dos adolescentes para a religião, vem de abordagens inadequadas e sem sentido, como fazer jogos de perguntas, música em coro, etc. Ou seja, o grande ensinamento veria da igreja como uma instituição que concentra uma resposta para tudo.
Em uma das aulas de crisma, Santa, fora de seu estado normal, irrita-se com a falta de sintonia entre ela e seus alunos. Nesta cena, a frase: "Eli, Eli lema sabachthani" é pronunciada e Marta pergunta o seu significado ao que acaba sendo ignorada por sua catequista. O segmento ganha potência dramática e Santa acaba por dar um tapa em Marta pela sua rebeldia de zombar dela dentro da igreja. Esta situação é o ponto chave para que a menina mostre sua individualidade, isso é expressado pelo corte de cabelo que Marta faz como ato de resistência.
Mais a frente, a menina descobre o significado da expressão "Eli, Eli lema sabachthani", que significa "Meu Deus, por que me abandonaste?", frase gritada por Jesus Cristo quando estava na cruz para morrer. De certa forma, Marta toma a frase para si, já que a igreja se mostra isenta de interesses por esclarecer seus questionamentos, e as pessoas ao seu redor não percebem os jovens como seres de individualidade própria.
Alice Rohrwacher tem uma forma própria de filmar, isso se mostra na maneira como demonstra a cidade, a ruína dos prédios e a deterioração urbana, as pessoas e a forma como interagem. Toda essa composição dos personagem com relação ao cenário em que se encontram, dá profundidade à história com uma sutil crítica social. Rohrwacher consegue evidenciar as dicotomias do território, em que a modernidade e a tradição se encontram, através da paisagem, dos valores, e da forma como estes valores influenciam e são influenciados pelos seus cidadãos.
Marta se encontra em território estranho, esse pode ser literal, já que ela precisa se adaptar a nova cidade, ou de forma figurativa, já que ela está passando por mudanças em seu corpo. Isso fica visível através das cenas em que a menina tenta perceber as mudanças no seu corpo frente ao espelho, em que rouba o soutien da irmã, fazendo a própria comida, e tendo a primeira menstruação. Com isso, a curiosa Marta anda sozinha pelas ruas e prédio e descobre aos poucos a violência escondida sob a superfície da igreja.
Ao acompanhar a história, percebemos que o corpo celeste mencionado no título, é o de Cristo e o de Marta também. Dois corpos que, abandonados pelos hipócritas, receberam suas sentenças, seja por meio de um gesto de espera, como o fizera Jesus, ou por meio de um corpo em trânsito, como ocorre com nossa protagonista. No final das contas, Marta opta por não participar da crisma, ao invés disso, ela prefere se aventurar pelo ambiente e aquilo que ele proporciona como vivência e experiência.
Cada ser vivo é um ser sagrado, e muitas vezes não é dito isso para que as pessoas acreditem que estão em um patamar inferior às hierarquias sociais. É visível a crítica que Rohrwacher traz em seu filme: hipocrisia da igreja, a supervalorização da imagens e crucifixos, interesses financeiros e de poder, e diferenças hierárquicas entre a igreja e a posição da mulher serviçal. Os rituais religiosos perderam o seu sentido e mistério, as pessoas se desapegam dos reais valores e a comunidade não chega a ser íntegra e moral.
Título: Corpo celeste
Direção: Alice Rohrwacher
Ano: 2011
Duração: 1h39min
País: Itália
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