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"CRIME DELICADO". A EFICIÊNCIA FEMININA DIANTE DA FALTA.



Estupro e assédio são temas que fazem parte da realidade social do Brasil e de muitos outros países. Não é muito simples abordar estas temática, porém existem filmes que encaram o desafio, e tomam essa situação como ponto de partida para reflexões mais profundas, como o filme Crime delicado (2005) de Beto Brant.


O filme Crime delicado é baseado no livro Um Crime Delicado de Sérgio Sant'Anna, e aborda a posição da mulher como objeto passivo de desejo masculino, e também chama atenção para a situação e representação das minorias no país.


Nele, acompanhamos Antônio, um crítico de teatro exigente. No começo do filme, vemos uma encenação no palco de um teatro, e depois vemos Antônio escrevendo uma crítica em sua casa desaprovando a peça. O crítico é cheio de certezas e manias, e não consegue ter relacionamentos profundos, pois acredita que os que se aproximam dele, estão interessados apenas em sua posição de influência.


O filme possui uma personagem feminina principal, seu nome Inês, uma mulher empoderada, que é atriz e modelo artístico, e que possui uma deficiência física, falta-lhe uma perna. Inês não deixa sua deficiência lhe prender, ela se coloca no mundo com liberdade de escolha e ação.


No primeiro encontro com Antônio, é Inês que flerta com ele. A moça está no bar com seus amigos atores, enquanto o crítico está sozinho comendo sanduíche. Até que os dois trocam olhares, e começam a conversar. De cara, Antônio se interessa pela moça, e quando percebe que ela não tem uma perna, seu interesse aumenta. Ele simplesmente fica fascinado e começa a persegui-la.


O longa usa uma estética que se aproxima do documentário, há muitos momentos que os personagens falam para a câmera enquanto discutem sua visão sobre os acontecimentos. Outros momentos são filmados no ambiente do teatro, e faz referência ao teatro filmado do pós-cinema. Mas na maior parte do tempo, acompanhamos os personagens.

O filme cresce quando Antônio descobre que Inês posa nua para o pintor mexicano Felipe Ehrenberg, interpretando José Torres Campana. Ao ver um dos quadros do artista, o crítico se indigna com liberdade íntima que ela tem para com o pintor. Inês e Antônio não são íntimos, eles apenas se conheceram a pouco tempo, mas o crítico carrega um sentimento de posse para com a moça.


No quadro intitulado “Pas de deux”, a modelo e o pintor estão nus em uma espécie de abraço. O esboço do quadro foi pintado durante troca de posições, os corpos dos dois ficam bem próximos, o que demonstra intimidade física. É curioso perceber que o quadro foi realmente feito durante as gravações do filme, e de que ele teve um efeito nos atores, sendo eles ativos no processo.


Esta intimidade transmitida na tela, e a deficiência de Inês exposta, gera revolta em Antônio, ele conclui de imediato que o artista se aproveitou da moça. Um detalhe intrigante na pintura, é o órgão masculino que surge substituindo a perna ausente. Esta imagem abre espaço para interpretações diversas, isso enriquece a obra.


Alterado, Antônio vai até a casa de Inês pedir explicações, a moça recua o ato agressivo, mas ele tira vantagem de sua deficiência e acaba por forçar sua entrada na casa e também o ato sexual. Depois do ocorrido, Inês dá queixa na polícia e o crítico é acusado de estupro.


E aí chegamos a grande questão do filme. Em um plano aberto e estático, é mostrado claramente que se tratava de um estupro, porém, tomado por sua razões cegas, Antônio afirma ter sido consensual, e confirma isso romantizando o ato que o inspirou a criar um poema.

As figuras de Inês e Antônio podem fazer analogia a dominação masculina sobre a mulher. Na idade média a inferioridade feminina partia de algo biológico, pois lhe falta o pênis. O princípio da vida iria do homem por ter um falo e sua função de gerador, e o útero seria um objeto oculto, submisso e passivo. Diante desses conceitos homem seria um ser eficiente, lhe é permitido fazer o que deseja, e a mulher naturalmente deficiente.


Assim, Antônio se coloca como uma figura de dominância diante da deficiência de Inês, negando a sua liberdade e o direito ao prazer. Por mais que sua acusação seja questionada pelas autoridades, ela se coloca firme perante ao que lhe ocorrera. Para ela foi, sem dúvida, um ato forçado, algo que ela não queria. Então por que questionar sua fala? Quem poderia ter mais certeza além dela?


Assim, Crime delicado é uma obra que faz refletir sobre até a consensualidade dentro das relação, e até onde a liberdade da mulher chega diante do olhar dominante que a coloca como objeto. Por mais que Inês, ou qualquer outra mulher fosse empoderada e independente, tendo as duas pernas ou não, ela ainda carregaria a “falta” em sua existência feminina.


Infelizmente, as mulheres ainda não possuem um controle total sobre sua vida, pois existem ideias enraizadas na cultura que diminuem a sua imagem e as tratam de forma inferior, mesmo que não seja muito claro. E é muito rico ter a delicadeza artística como aliada a estas discussões, tanto na pintura quanto no cinema, pois o importante é a busca pela conquista da total eficiência feminina.




Título: Crime delicado

Direção: Beto Brant

Ano: 2005

País: Brasil


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