É interessante a quantidade de filmes que decidem abordar a imagem da mulher forte na cinematografia contemporânea. Muitas dessas obras trabalham bastante na ideia de se aproximar do público feminino. Além de outras iniciativas que surgiram para alcançar também o público mais jovem. Um exemplo disso é o filme Enola Holmes (2020) dirigido por Harry Bradbeer. O longa traz elementos do feminismo diante de uma figura jovem e criada com liberdade.
O filme baseia-se no livro "O caso do marquês desaparecido", da estadunidense Nancy Springer. A narrativa é protagonizada pela caçula da família, e assim a Netflix traz Millie Bobby Brown para interpretar a menina detetive. E por mais que a personagem pertença a um novo universo, ela se encaixa bem na narrativa de perspectiva mais tradicional de Sherlock Holmes.
A garota cresceu numa mansão e depois do falecimento do seu pai, foi educada pela sua mãe. Sua vida não se conecta com as dos irmãos pelo fato de terem convivido pouco tempo juntos ao longo desse período. Longe dos homens, as duas construíram suas vidas de forma livre. Isso explica o fato de Enola não obedecer aos irmãos quando sua mãe desaparece, contrariando suas ordens ao partir em uma jornada sem consultá-los.
Atualmente, a proposta de filmes feministas ou que trazem uma idéia do movimento é enorme. E essa é uma mudança que também está acontecendo com o público. Daí a necessidade da indústria cinematográfica de construir obras baseadas no estímulo do público em consumir títulos que foquem nas questões atualmente em foco na sociedade, como por exemplo: o feminismo, o racismo, os direitos LGBTQI+. Porém, ainda há filmes que demonstram superficialidade ao abordar essas temáticas.
Enola Holmes é, infelizmente, um desses trabalhos. O filme parece ter medo de ir profundamente no tema e acaba usando de clichês como muleta para alcançar um público maior, para além daqueles já consomem usualmente a popular plataforma. Por isso a opção pela escolha de Millie Brown para protagonizar o longa, já que a moça tem popularidade o bastante para chamar a atenção ao filme.
Enola, cujo nome de traz para frente significa "alone", sozinha em inglês, parece nunca estar só, já que em certos momentos ela quebra a quarta parede e conversa diretamente com o público. Ela se coloca como narradora de sua própria história. Esse é um dispositivo interessante, mas que no filme é usado gratuitamente, já que não acrescenta em nada na narrativa.
Seria interessante se essa estratégia fosse característica da personalidade infantil e sonhadora de Enola. E que, ao longo da jornada, o recurso se transformasse em algo mais, pontuando sua mudança íntima rumo à maturidade. Mas não é o que acontece. As falas diretas para a câmera são usadas somente para gerar conexão com o público pela popularidade e simpatia da atriz.
Além da figura de Mycroft Holmes, que aparece como o irmão malvado que está sempre reprimindo a garota, ainda há o internato e a figura da professora de etiqueta. Não basta a rígida professora representar a estrutura punitiva que existia no ensino das meninas no século XIX, Enola ainda é obrigada a usar um uniforme semelhante ao de uma freira no lugar.
Esses simbolismos que são colocados no filme são elementos fáceis que colocam em foco a rigorosa estrutura patriarcal que as mulheres deveriam se adequar, mas quando a trama toma forma, o excesso desses elementos opressores acaba deixando a estória redundante e cansativa de assistir, pois destacam bem a fragilidade da abordagem adotada pelo filme.
A jovem protagonista não parece ser bastante desenvolvida para sustentar a narrativa por ela protagonizada. Ela acaba se envolvendo na trama de outro personagem, deixando de viver sua própria aventura, que inclui sua autodescoberta e a busca pela sua mãe. Ao invés disso, ela se envolve com um jovem conde que está fugindo da família e que sofre perigo de morte. Sensibilizada com isso, a garota sente que deve "proteger" o rapaz.
Não é pouco comum vermos personagens femininas responsáveis pela proteção das figuras masculinas da estoria, essa é uma característica recorrente no estereótipo da mulher forte no cinema. Pode ser ilustrado com as personagens Trinity de Matrix, Quorra de Tron o legado, e Fox de O procurado, todas secundárias.
Em Enola Holmes, a jovem acaba se colocando como secundária diante da narrativa do rapaz, a quem ela se interessa. Isso acontece porque suas ações acabam sendo conduzidas pela ligação que ela tem com o rapaz, ao invés de sua ligação com a mãe, que é uma sufragista.
É interessante a menção ao Sufragismo em um filme para o público jovem, pois isso pode ajudar a despertar alguma curiosidade dessa audiência para conhecer o movimento. Porém, a proposta perde a força no desenrolar da própria história, já que tanta a figura da mãe de Enola quanto o seu desaparecimento não são explorados de forma aprofundada.
O filme poderia explorar mais a habilidade da personagem como investigadora, mas os mistérios são rasos e a menina os resolve sem grandes esforços. Sem falar nas cenas performáticas que não fazem a narrativa caminhar, assim como o personagem do irmão, Sherlock, que não tem uma função definida na trama.
Por mais que a menina tente ir contra os padrões das damas de sua época, ela acaba caindo em uma armadilha comum. Eu sempre reflito sobre isso, por que me parece que os roteiristas não conseguiram encontrar uma forma de desenvolver a personagem sem vinculá-la a figura masculina ou ao tema do romance.
Então percebemos que Enola Holmes tenta reconhecer as discussões contemporâneas trabalhando-as dentro de histórias já conhecidas, e isso é válido, porém, é uma obra que que parece mais preocupada em se adequar ao códigos das produções da Netflix enquanto plataforma, e por isso, mesmo com todos os esforços, não conseguiria aprofundar o tema feminista de forma ousada e original.
E é sempre importante questionar sobre como as mulheres aparecem no cinema e em filmes que dizem levantar a bandeira feminista. Para além da escolha de protagonistas femininas ou no uso de símbolos do movimento, é essencial refletir como o cinema pode desconstruir abordagens que se repetem e colonizam o feminismo.
Título: Enola Holmes
Ano: 2020
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