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O escândalo", Quando a forma fílmica abala a temática.


As histórias existem em todos os lugares. E o que faz uma história ser atraente é seu potencial dramático, seja ela baseada em fatos reais ou não. As narrativas de abuso sexual no ambiente de trabalho nem sempre são atraentes, porém, com base nos escândalos de assédio sexual que abalaram o mundo do cinema e tv nos últimos anos, a temática passou a ser cada vez mais explorada na indústria da arte e do entretenimento.


Um dos filmes que abordou um desses assuntos foi O Escândalo (Bombshell) (2020). Acredito que muitos ficaram curiosos para saber como o evento que ocasionou a renúncia do fundador e presidente da Fox News iria ser retratado no cinema. Porém, foi justamente na sua forma fílmica que o longa decepcionou.


O filme retrata os acontecimentos que acabaram com a imagem e a carreira de Roger Ailes, CEO da Fox News e que foi acusado de assédio sexual por diversas funcionárias da emissora. O Escândalo tenta trazer na tela o ponto de vista de 3 mulheres, Megyn Kelly (Charlize Theron) e Gretchen Carlson (Nicole Kidman), jornalistas reais; e o de Kayla Pospisil (Margot Robbie), que é uma personagem fictícia.

Um dos maiores erros do filme é não escolher mulheres para assumir a criação do roteiro e direção. As limitações do roteirista Charles Randolph e do diretor Jay Roach, são perceptíveis ao observador atento. Isso se dá pela falta de um olhar mais sensível para a situação das personagens, e isso os acabam levando a escolhas narrativas equivocadas.


O diretor usa uma estética semelhante a do documentário televisivo, parecida com a do filme A Grande Aposta de Adam McKay. O cineasta usa e abusa de zooms, quebra a quarta parede em alguns momentos, fazendo com que os personagens falem diretamente ao espectador, além do uso da narração em off como dispositivo didático, sempre com uma montagem rápida.


Esta é uma forma bastante utilizada atualmente e muitos filmes que a usaram, conseguiram se destacar. Parece que a equipe criativa de "O escândalo" escolhe adotá-la almejando o mesmo prestígio, sem sequer questionar se ela encaixaria ou não com a história contada.


Com isso, mal conseguimos entender as motivações das três mulheres ou como reagem aos acontecimentos. O pior de tudo é que, dentro dessas escolhas, os dispositivos simbólicos que o filme carrega transmitem uma mensagem totalmente equivocada sobre a gravidade dos abusos dentro daquele universo. E traz mais um clima cômico para toda a situação.


Megyn Kelly é uma jornalista renomada e comentarista de política. De 2004 a 2017 foi âncora de jornalismo no canal Fox News. Ela possui um lugar de destaque no filme e estava no auge de sua carreira. Esse foi o mesmo período em que Gretchen Carlson anunciou a sua saída da emissora, junto de um processo de assédio sexual contra Roger Ailes.

Carlson foi apresentadora da Fox News no programa Fox & Friends e depois ganhou seu próprio programa. Mas isso não foi uma conquista, e sim uma punição pela sua postura feminista. Em muitos momentos, o filme passa a ideia de que o processo iniciado pela jornalista está associado a uma pequena rivalidade, e não ligado aos assédios que ela sofreu diariamente na grande emissora. A própria personagem chega a mencionar que é conhecida como "odiadora de homens".


Já Kayla seria uma personagem construída com base nos depoimentos de algumas vítimas, jovens com menos poder dentro da emissora. A personagem tinha tudo para ser diferente, porém, ela é apenas mais um estereótipo. Sua atitude aparenta sair da ingenuidade, para a tolice. Mesmo trabalhando em um ambiente claramente machista, a moça parece não perceber o como as coisas funcionam no local.


São perceptíveis os indícios de que o ambiente de trabalho da Fox News é carregado de vícios, misoginia e hipocrisia. As mulheres que ali trabalham precisam se enquadrar ao padrão de beleza escolhido pelos líderes homens, e são obrigadas a usar saias acima do joelho. Isso é bem explícito principalmente quando notamos as características das três mulheres condutoras da história.

Quando o processo de Carlson veio a público, ela sabia que precisaria que outras mulheres se posicionasse. Para ela, estava claro que seu ex-chefe possuía um padrão e outras certamente sofreram o mesmo que ela. Mas muitas profissionais não se pronunciaram por medo. Pois, na maioria das vezes, elas que são consideradas culpadas e não o homem abusador. Em vários momentos o filme também toma este posicionamento.


A figura de Roger Alies é caricata e traz um tom de insanidade. O personagem geralmente aparece comendo e comentando sobre conspirações a seu respeito. Essas características apenas abrem margem para uma pretensa justificativa em relação às suas atitudes abusivas. O que é bastante problemático.


Em uma das primeiras cenas, Megyn Kelly narra um pouco do passado de seu chefe. Ela menciona os pais divorciados e a adolescência difícil, para justificar o fato dele se tornar quem é. A fundação do seu canal também parece estar justificada com base no apelo ao público conservador, a partir do desejo de se recuperar a ideia de uma América perdida.


Durante a acusação de assédio, Kelly começa a refletir sobre seu percurso na Fox, nisso conversa com os responsáveis pela investigação, e menciona que também teria sido assediada durante o começo de sua carreira. Fato que ela manteve em segredo por um longo tempo, até então.


Uma das cenas que causam contradição é a do primeiro assédio sexual que Kayla sofre, pelo menos o mais evidente para ela. A moça almeja crescer profissionalmente e deseja se destacar. E por isso faz o possível para chamar a atenção de Alies. O que acaba acontecendo é que ele se interessa por ela com outras intenções.


Em um encontro na sala do CEO, Kayla é coagida por ele a levantar sua saia até mostrar sua roupa íntima. A cena é constrangedora e controversa. Infelizmente, a atriz que já é bastante sexualizada no meio de Hollywood, é inserida em uma sequência que carrega o ponto-de-vista do abusador e retrata o assédio de forma voyeurista, ao invés de trazer a situação na percepção da moça.


Como mulher, fiquei incomodada com esse segmento do filme e também o modo como ele trata a figura de Kayla. Depois do evento, ela é várias vezes solicitada pelo chefe. Seu semblante é de nervosismo. Ela não sabe o que fazer na situação. Tenta conversar com uma amiga, mas ao invés disso, é julgada. A moça se vê sem opções.

É dentro da forma fílmica que a ideologia de um filme se comunica. Para muitos ela pode passar despercebida, porém, basta o público se concentrar nos códigos, para se distanciar conscientemente da história e perceber os seus significados ocultos.


O Escândalo tem um posicionamento ambíguo diante dos fatos reais que carrega. Ele defende a posição das mulheres como vítimas do grande empresário, mas de outro lado parece usar dos dispositivos fílmicos para colocá-las como antagonistas de suas próprias histórias. Um exemplo disso é a escolha por uma trilha sonora triste na cena em que o CEO vê sua carreira desmoronar.


Diante de sua forma, “O escândalo”, a meu ver, transmite a ideia de que os homens desejam as mulheres porque são homens, e que em contrapartida as mulheres se beneficiam deste tipo de postura das figuras masculinas. E por mais que o filme utilize o depoimento de algumas vítimas, acaba voltando ao julgamento, ao invés de trazer códigos que façam o público questionar o comportamento doentio de alguns homens para com as mulheres.


O machismo está enraizado em nossa cultura. E por muitos séculos os homens possuíram essa posição de privilégios na balança das relações sociais com as mulheres, junto do direito de serem ouvidos e fazerem o que quisessem. Por mais que o obra carregue a temática sobre abuso sexual, não se preocupa realmente em trazer uma estrutura narrativa mais cuidadosa e favorável e justa em relação à perspectiva feminina.


Talvez se as mulheres estivessem à frente do projeto de “O escândalo”, o filme tomasse outro caminho., seria outra obra, inclusive. Histórias como essas existem em todos os lugares, até mesmo dentro de Hollywood. Agora é a hora de dar voz às mulheres, trazer uma narrativa adequada aos seus discursos, junto de bastante sensibilidade e empatia.




Título original: Bombshell

Ano: 2020 (Brasil)

País: Estados Unidos

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