O ESTRANHAMENTO DESCONJUNTADO DE LISPECTORANTE
- raianecfferreira
- há 5 dias
- 2 min de leitura

O mundo sob os olhos de um artista. Lispectorante propõe uma experiência surrealista repleta de beleza e confusão e que deixa a desejar pela incompletude da superficialidade
Glória Hartman é uma artista que vê encanto no mundo, mas que enfrenta uma crise existencial e financeira. Sua ingenuidade e inocência “a lá Macabéa” traz uma certa tonalidade interessante ao filme, junto com a fotografia que ressalta as cores da cidade como se esta fosse uma pintura viva. A sonoridade ajuda também a experimentarmos uma trajetória pelos “olhos” da protagonista, onde a beleza e o caos convivem juntos.
O retorno à cidade, o novo amor e a imaginação são atravessados pelos desafios do mundo real em um convite à Glória para superar obstáculos para ter algum futuro mais tranquilo, digamos assim. Mas, apesar das adversidades colocadas no filme, há muitas pontas soltas na narrativa que, apesar de não ser algo necessariamente ruim para esse trabalho especificamente, acabam esvaziando a narrativa a partir de uma montagem desnorteada.
A ideia da criação de uma droga ilegal chamada “Lispectorante”, que serviria para expectorar as mágoas, prazeres e outras coisas mais, até parece interessante. Talvez o filme se proponha a isso, a ser esse detonador que quer tirar de nós, espectadores, sensações pela carga sensorial. A sensorialidade aqui utiliza de aparatos estéticos simples com ângulos relativamente desenquadrados e no uso de uma câmera nervosa, trilha sonora e fotografia que, por vezes, utiliza de sombras e cores. No entanto, tudo parece exceder, subir o tom, causando um efêmero estranhamento. E a falta de refinamento no trato com a materialidade fílmica na montagem, torna tudo isso raso e ineficaz.
O cinema surrealista tem como uma das principais características a exploração do subconsciente humano a partir do onirismo. Em algumas poucas cenas, o longa até parece querer retratar algo íntimo de Glória, mas logo essa premissa se esvai, caindo nessa mesma estrutura desconjuntada que persiste ao longo de todo o trabalho.
Como apreciadora da obra de Clarice Lispector, confesso que esperava mais do filme. A escritora é conhecida pela escrita que aborda o profundo em algo banal. São por meio da construção de eventos do cotidiano, como a aparição de uma batata ou um ovo sobre a mesa, que somos convidados a adentrar em reflexões complexas e existenciais sobre o que é ser um humano. Infelizmente, Renata Pinheiro não conseguiu trazer essa característica para sua obra de forma eficiente. Tudo fica na superfície, seja na colocação de determinados eventos mais destoantes ou por meio de uma narração supostamente reflexiva.
Quero pontuar que o profundo se difere de estranho. O estranho pode surgir para chocar, para tirar o espectador de um lugar confortável. A profundeza é aquele lugar onde precisamos ir para buscar um sentido naquilo mais íntimo de nós. E Lispectorante me parece apostar mais no estranhamento que no profundo. Ele chama atenção pela sua estética vibrante, mas no final não propõe nada de original ou realmente memorável.
Comentários