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O LIXO E O SONHO | A ESPERANÇA EM MEIO AO CAOS


A infância é retratada pelo cinema muitas vezes como um momento de inocência e fantasia. Mas esta não é uma realidade de todas as crianças. Muitas delas, independente do País ou lugar de origem, vivem em ambientes inóspitos, sem nenhuma condição de viver uma inocência saudável. Como retratar toda esta imagem sem apelar aos extremismos das circunstâncias? E é aí que entra o cinema de Lynne Ramsay. Em seu primeiro longa-metragem “O Lixo e o Sonho” (1999), a diretora equilibra a insalubridade com imaginação infantil de forma singular e delicada.


O filme começa com um acidente gerado por uma brincadeira violenta em que um garoto é morto ao ser empurrado no rio. É assim que somos apresentados a James, o jovem que teria cometido o crime no início da trama. Sentindo-se culpado, com medo e vergonha, James tenta viver normalmente escondendo este segredo. A história é contada pela perspectiva do menino que vive em uma realidade dura e cheia de instabilidades. A começar por sua família disfuncional e pelo lugar onde moram, um condomínio suburbano rodeado por muito lixo.


A narrativa acontece na periferia de Glasgow, na Escócia, na década de 1970, no meio da greve dos trabalhadores da coleta de lixo. Este fato deixa a atmosfera do local mais escura e asquerosa, o clima deletério se firma através dos sacos acumulados frente às casas, e dos ninhos de ratos a céu aberto.


A sujeira é ilustrada de várias maneiras na obra, temos ele nas ruas, no córrego, dentro das residências, nos rostos dos personagens e também nas relações tóxicas estabelecidas naquela região. Ratos e restos de comida estão por toda a parte e parecem refletir os moradores incomuns dos arredores. A imundice incomoda, mas não mais do que as dores e mágoas que são escondidas por aquelas pessoas todos os dias.

Porém, o afeto, mesmo que sutil, está presente no filme. E ele parece estar atrelado às atividades de limpeza. Diante daquela realidade desumana, a higiene torna-se um ato de amor. Por isso que cenas banais (como o ato de tomar banho) passam a ter uma outra carga dramática muito intensa. A força dos gestos de cuidado ultrapassam os muros narrativos e geram novos símbolos a elementos que são usados normalmente para causar nojo ou repulsa, como os ratos.


Já como temos uma criança conduzindo o foco narrativo. é natural vermos momentos espontâneos da mente criativa do garoto. James pode parecer, à primeira vista, mal educado e violento, porém esta característica surge como uma forma de sobreviver àquele local. Apesar da culpa que carrega, ele tem sonhos de uma vida melhor e em muitos momentos espontâneos ele demonstra seus desejos de sair daquele lugar.


É incrível como a diretora consegue extrair de todo esse cenário, imagens belas e atuações singelas. A fotografia tem cores acinzentadas e pouca iluminação principalmente nas sequências internas. A câmera possui uma postura quase documental de acompanhar a trajetória do protagonista mirim, assim como os demais personagens do filme. Esta escolha é reforçada pela presença de não atores no elenco, uma decisão que também causa empatia entre o público, dando mais ênfase à realidade pautada no longa.


É interessante perceber que o córrego vira um elemento importante no filme, já que retornamos a ele em vários momentos. Ele pode ser entendido como símbolo de perigo naquele ambiente hostil para uma criança, trazendo uma sensação de que algo trágico pode vir a acontecer. Mas esse é só um dos elementos de tensão, assim como as próprias relações entre as crianças e os adultos, todos eles resistem ao local, à beira da mesma água.


Durante suas aventuras, James escapa para brincar nos campos e nas casas inabitadas. Estas cenas são um respiro para o menino e para quem assiste, já que carregam um tom oposto ao do subúrbio. A fotografia agora traz cores mais vivas através de seu tom amarelado a partir da dinâmica criada com a natureza que existe ali. São nestes momentos que a esperança retorna ao coração do protagonista se desfazendo de uma expressão triste, onde ele pode ser, enfim, uma criança.


A fantasia diante a amarga realidade aparece na obra como um sopro de vitalidade. É nesse ponto onde a diretora consegue agir com criatividade na experiência estética da obra. As quebras na linguagem e o contraste entre decadência e esperança são apenas alguns fatores que fazem de “O Lixo e o Sonho” um trabalho fortemente poético, sendo não só um dos mais potentes trabalhos de Ramsay, mas sim uma uma pérola da Sétima Arte.



Título Original: RATCATCHER

Dirigido por: Lynne Ramsay

Ano: 1999

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