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O MILAGRE | AS HISTÓRIAS QUE ACREDITAMOS E AS HISTÓRIAS QUE CRIAMOS


Título original: The Wonder | País: EUA | Ano: 2022 | Direção: Sebastián Lelio | Roteiro: Emma Donoghue, Sebastián Lelio, Alice Birch | Duração: 115 min



Em todas as experiências fílmicas que podemos ter ao longo de nossa vida, algumas delas se potencializam por proporcionar uma vivência específica através daquilo que o cinema pode trazer para além da ilusão do real. E para mim, algo neste sentido aconteceu ao assistir o filme “O Milagre”, dirigido pelo diretor chileno, Sebastián Lelio. lançado pela Netflix em novembro de 2022.


Lançado pela Netflix em novembro de 2022, “O Milagre” é uma adaptação do livro homônimo de Emma Donoghue. Nele, acompanhamos Lib Wright (Florence Pugh),uma enfermeira inglesa que é convocada por um comitê irlandês em busca de entender o que está acontecendo com uma jovem de 9 anos chamada Anna O’Donnell (Kíla Lord Cassidy). A garota não come há quatro meses, porém não possui nenhum problema de saúde.


O caso da menina é entendido como milagre pela maioria das pessoas do local e charlatanismo da família por alguns. Lib é contratada para observar e procurar saber se Anna está se alimentando de alguma maneira. Assim, a enfermeira mergulha na busca incessante em desmentir todas as crenças que pairam sobre o evento.O problema é que, ao ir fundo demais, ela acaba revelando verdades assustadoras que ativam alguns de seus traumas pessoais.


Apesar de ser construído como um drama histórico, o filme também leva consigo traços da narrativa psicológica uma vez que o trauma passa a ser um dos pontos importantes na trajetória das personagens. O diretor consegue transportar o público para o século XIX, ainda que revele nos primeiros minutos do longa-metragem, a ideia de que o que iremos ver adiante é apenas uma ficção. E desta forma, ele divide com o espectador a consciência de que a narrativa se trata de um filme, de uma estória que está sendo contada.


O Milagre também é constituído a partir de uma proposição de situações de reforço, repetição. Algo caracterizado principalmente pela continuidade do ato de Lib ir todos os dias à casa da pobre família de Anna. E é assim que ela desenvolve uma relação com a garota, construindo uma certa confiança dela aos seus cuidados, convidando-a a se abrir emocionalmente. Nestes momentos há uma potencialidade que faz o longa caminhar e se desenvolver para a grande conclusão e revelação do real motivo de toda a atitude da garota.


Florence Pugh, como sempre, consegue ter uma performance excepcional. Seja pela representação do temperamento forte da protagonista, sua posição incisiva e determinada da enfermeira, ou pela exposição das fragilidades e precipitações por que passa a sua personagem. A jovem Kíla Lord Cassidy não fica para trás. Com apenas 13 anos, a atriz mirim transporta à Anna uma singularidade de pensamento e ação perante os demais personagens. Seu semblante de inocência e sofrimento se mistura à matéria da própria paisagem da residência onde a narrativa se desenvolve.

A fotografia propõe uma dinâmica entre luz e sombra, que ultrapassa as definições técnicas, atravessando também as complicações que existem no campo conceitual da história. Temos uma grande quantidade de imagens no filme que causam a sensação de dualidade. Uma atmosfera que existe tanto nas ambiências internas quanto nos ambientes externos.


No exterior temos o céu aberto e limpo em contraste com as figuras terrestres que vivem em meio a tempestades internas e particulares. Já dentro da casa, a ideia de contraste luminescente figura em primeiro plano. Uma lógica que se revela pelo peso maior que vem dos objetos carregados e das cores escuras das paredes, em oposição a um fio de luz que vem da janela ou de uma lamparina fixa em algum ponto da antiga residência.


Para além disso, temos uma unidade de tudo aquilo que é utilizado por Lelio para contar esta história a partir do que a direção artística ou o design de produção no cinema dá a ver. Todos os objetos, paisagens, diálogos e ações são pensados e arquitetados, dando uma união ao enredo, dando corpo à trama. Nada é em vão. É preciso estar atento para ler as entrelinhas.


O Milagre, a princípio, é colocado como um filme sobre os embates da religião e da ciência. Mas, na verdade, esta é apenas uma pequena parte do que o filme propõe. O diretor parece mais interessado em propor uma reflexão sobre o hoje e o passado, onde muitas histórias são contadas, muitas versões e visões distorcidas sobre um acontecimento. Além disso, também há a premissa de que muitas vezes uma estória é contada para que um trauma seja superado.


Então, não estamos diante da realidade, mas sim de um filme. As três intervenções que Lelio propõe no prólogo, no meio da narrativa e no epílogo nos falam desse cinema de consciência. E isso, de forma alguma, despotencializa a experiência do espectador. Apenas temos à nossa frente uma obra que reafirma a relação entre a realidade e a performance através da linguagem cinematográfica. Ainda que a sua estrutura preserve toda essa complexidade temático-conceitual, o filme deixa o espectador viver a experiência que a imagem em movimento, o som e a construção cênica propõem na sua totalidade.


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