Há certos filmes que chamam atenção por serem rotulados como polêmicos. E às vezes, este fato pode ser lido como um artifício usado para despertar curiosidade no público, já que algumas obras de fato não tem muito a oferecer. Porém, existem trabalhos em que este parâmetro não compete para definir uma complexidade que surge como fruto direto de um cinema autoral. É neste contexto que analisamos a obra ‘Para Minha Irmã’ (2004) da diretora francesa Catherine Breillat.
“Para minha irmã” é o sétimo longa de Breillat, que possui uma carreira autoral tanto no cinema quanto na literatura. Suas obras geralmente abordam o universo feminino, a sexualidade, a violência e o conflito familiar. Seu trabalho costuma provocar opiniões distintas do público por causa das suas escolhas de representação do papel da mulher na sociedade contemporânea, a violência e a sexualidade de nossos tempos.
Com este seu longa não é diferente. Temos aqui um filme forte que pode desagradar alguns espectadores, por trazer na tela questões que normalmente são escondidas nas profundezas da sociedade. É nesse contexto que a diretora nos coloca para acompanhar duas irmãs adolescentes que estão começando a se desenvolver sexualmente.
Elena, a mais velha, é bonita, magra e começa a querer conhecer novos garotos. Durante um feriado, ela decide fazer um passeio e leva consigo a irmã mais nova, Anaís, que só tem 13 anos e está com sobrepeso. Em uma destas caminhadas, as duas conhecem um rapaz bem mais velho que se interessa por Elena, iniciando assim um breve envolvimento amoroso cheio de complexidades.
Uma das coisas que este filme chama atenção logo nas primeiras cenas, é sua forma brusca e repentina no qual os acontecimentos são postos na tela. E esta escolha estética surge pela própria forma como as garotas se relacionam com seu entorno. As irmãs parecem querer se afirmarem no mundo através da sexualidade e esta pulsão sexual é desenvolvida na forma como os elementos dramáticos são expostos nas cenas.
Os pólos distintos em que são investigadas as protagonistas demonstram uma relação conturbada que afetam suas concepções de mundo. Anaís é bem articulada e tem opiniões fortes, mas está inserida dentro de um ambiente opressivo, primeiramente por conta do seu peso, e depois em função da constante intimidação que sofre pela irmã.
Elena e Anaís vivem uma relação de amor e ódio, assim definida por elas, mas que não pode ser romantizada, já que há uma veia tóxica que distorce a percepção do amor e do respeito. Elena também vive uma relacionamento prejudicial com o namorado, Fernando. É interessante como a direção de Breillat edifica estas relações dentro de uma violência sutil, mascarada de afeto.
Em uma sequência de quase 15 minutos, Anaís presencia uma relação sexual entre a irmã e o namorado. Para além da ideia de violência que o próprio testemunho da protagonista carrega em si, há um índice de manipulação também por parte do rapaz para com a jovem virgem, Elena. Esta é claramente uma cena de abuso e talvez seja por causa desta passagem que os espectadores problematizam o trabalho. Os questionamentos surgem pelo fato de que na construção da realidade do filme, Anais, de apenas 13 anos estaria exposta a uma situação inapropriada e de certa violência também.
De fato, esse segmento do filme é indignador. Mas é de extrema importância também para o que a realizadora deseja discutir. Já que o tema da violência percorre este trabalho do início ao fim. O estranhamento e a tensão postas na narrativa, são oriundas de uma violência que não conseguimos dimensionar, até o momento em que ela é escancarada na nossa frente.
A personagem da mãe das garotas também é fruto desta brutalidade, já que ela se ausenta da vida de suas filhas. Este distanciamento só aumenta os problemas das meninas com relação à sexualidade feminina, por exemplo. Além disso, é curioso perceber que a própria mulher é refém de uma relação estranha com o marido, uma figura que não é presente no ambiente familiar mas que dita de longe as diretrizes desse agenciamento social.
Por mais que as escolhas das três mulheres sejam errôneas, nenhuma delas é retratada como culpada pelos eventos que lhe acontecem. A diretora não rotula as suas personagens. E isso é um fator que demonstra a maturidade da autora diante do seu trabalho artístico, pois não lhe cabe julgar o que está certo ou errado, ou fazer juízo de valor. Quem talvez traga esse impulso seja o espectador em suas próprias referências, muitas vezes, limitadas.
Quando falamos sobre as relações exploradas neste longa, é importante refletirmos sobre a natureza da normalização desses diversos tipos de violência notadas no tecido social contemporâneo. Seja ela expressa pela veia física, moral ou discursiva. E é aí que a diretora pauta a sua crítica. Uma vez que ela se concretiza claramente ao final do filme.
A diretora encerra o trabalho com a cena super climática, ou seja, em um ponto mais alto da narrativa e não necessariamente oferece um encerramento para ela. Esta escolha talvez vem do objetivo de fazer o espectador perceber como o constante quadro abusivo afetou o olhar da jovem para com o sexo e o amor ao longo de toda a sua jornada até ali.
Para além de um filme polêmico, temos em “Para Minha Irmã” uma reflexão necessária sobre as máscaras que o abuso pode vir a ter. Problema este que pode estar presente nas relações amorosas e familiares e que distorce a percepção saudável do que seria esses dois campos da vida humana. E essa passivo-agressividade nas relações humanas infelizmente ainda é percebida nos dias de hoje e afeta a existências de meninos e meninas, homens e mulheres.
Título original: À ma soeur!
Ano: 2001
Direção: Catherine Breillat
País: França
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