O cinema é uma arte que nos permite o acesso a realidades e universos que talvez jamais poderíamos imaginar. As histórias surgem de todos os lugares e formas possíveis e é incrível notarmos como as tramas são colocadas na tela. Sejam elas ficcionais ou não, todas possuem sua construção baseada na realidade cotidiana. Sean Baker é um desses diretores que tem se destacado nos últimos anos utilizando dessa estilística fílmica. Seus filmes, como Tangerina (2015) e Projeto Flórida (2017), se utilizam bem desse modo de construção da arte no cinema.
Uma das maiores forças de suas obras é o fato de contar narrativas de personagens cuja representatividade na sétima arte ainda é pouco explorada. Seu foco se volta muito para o cotidiano da juventude dos bairros pobres dos Estados Unidos e dos diversos conflitos existentes nessa América que muitas vezes não encontra espaço no cinema comercial por natureza. Por conta disso, e da forma como o diretor aborda a realidade destas figuras, é que muitos tenham interesse em assistir o seu novo trabalho, 'Red Rocket'.
Lançado em 2021, Red Rocket é uma comédia dramédia que carrega muito humor negro. Nela, acompanhamos um ex-astro de filmes adultos, Mikey Saber, que volta para o interior do Texas onde cresceu. Chegando na cidade e precisando de uma casa para morar, ele busca ajuda com sua ex-mulher. Porém, o ator não pretende ficar naquele local, nem começar uma nova vida ali, ele quer voltar para Los Angeles e recuperar a vida que tinha antes de tudo isso.
Assim como os outros filmes de Sean Baker, Red Rocket é composto por tipos que são reféns da sociedade e esquecidas por ela. Por isso a escolha por um ex ator-pornô, uma ex-garota de programa, uma aposentada doente, uma jovem senhora traficante, um jovem que não sabe o que quer da vida e uma menina bonita que sonha com um futuro melhor. Arquétipos que não costumam ter destaque em grandes produções hollywoodianas, por exemplo.
O cenário da cidade condiz com a proposta do filme. O local possui muitas refinarias que poluem o ar e oprimem a visão dos moradores da localidade. Mas não é só o ar que está sujo naquele ambiente, a vida dos moradores dali também está repleta de sujeira. Essa busca por um lugar ao sol dentro de um sistema em que os exclui, os leva a conduzirem suas vidas por caminhos ilícitos e muitas vezes cheio de ilusões.
A ideia do sonho americano já foi retratada pelo diretor no premiado Projeto Flórida, porém, Baker aborda em Red Rocket o sonho de uma vida glamurosa através da busca por um título frívolo. Para isso temos Mikey, um homem que alcançou uma pequena fama como ator pornô na juventude e que não quer desapegar do status que tem neste universo. Logo, é por isso que ele se envolve em muitas intrigas e problemas nos quais ele não assume responsabilidade nenhuma.
Ou seja, em primeiro plano, temos um protagonista imaturo e que não amadurece ao longo da narrativa inteira. Mikey é um tipo de pessoa que acredita poder conseguir tudo o que deseja através do carisma e da beleza. Desta forma ele usa outras pessoas para conseguir seus objetivos. É de fato um homem totalmente tóxico. Porém, neste ambiente proposto pelo diretor, ninguém é vilão ou mocinho, todos estão dispostos a defenderem o pouco que conquistaram em uma comunidade relativamente segregada e violenta.
É interessante pontuar que a história acontece em 2016, na época das eleições norte-americanas. E sua trama se passa na região da Califórnia formada por São Francisco, Los Angeles e San Diego, regiões dos Estados Unidos responsáveis pela eleição do republicano Donald Trump para presidente. Mas o diretor não pretende impor um pensamento político com o seu trabalho, ele apenas deixa aberto para o espectador interpretar as nuances daquele cenário. o fato de ele tomar esta posição no mesmo contexto de outros assuntos que surgem no longa acaba gerando um tom ruidoso na obra, como por exemplo, a abordagem sexualizada de determinados personagens.
É fato que a vida como ator de filmes adultos levou o personagem e a sua ex-esposa a uma condição lamentável. Mas em nenhum momento, Baker aprofunda esse tópico. A sexualidade e a aparência são supervalorizadas pelo protagonista e é isso que o leva a desejar a jovem strawberry, uma atraente atendente de uma loja de rosquinhas californianas. Ela é um alvo muito direto para o cafetão que pretende levá-la ao seu universo através da promessa de uma vida de relativa fama e prazer.
O mais interessante neste filme é sem dúvida seus personagens, em específico as mulheres. Quase todas elas possuem personalidade firme. São o que são sem medo e sabem conduzir suas vidas a seu modo. Lexi, ex-esposa de Mikey e sua mãe são bem unidas e não vacilam quando precisam tomar alguma posição diante das armadilhas do inquilino. Leondrina administra seu negócio clandestino junto de June e conquistam o respeito dos demais moradores do bairro. Porém, com a garota Strawberry é diferente. E é discrepante como o filme desenvolve a figura da menina comparado às suas outras mulheres.
Indo do princípio, vamos focar um pouco na construção desta figura. Também conhecida como Inocente sexy, ela se enquadra no estereótipo da Born Sexy Yesterday.
Você pode não ter notado, mas essa classificação é muito usada na indústria cinematográfica. Ela consiste na personagem feminina ingênua e boba, com mentalidade de criança, mas com corpo sensual. Ela recebe ajuda de um protagonista homem e que a acompanha na descoberta de algo que ela não conhece. Além destes traços, a Inocente sexy pode ter também algum tipo de habilidade especial, como por exemplo, saber lutar muito bem.
A adesão por usar a figura da Inocente sexy nos filmes, só valoriza a visão superficial e puritana das jovens virgens, mais conhecidas hoje aqui no Brasil pelo termo "novinha". O problema desses perfis é que eles abrem espaço para um tipo de caracterização feminina que apenas sexualiza a imagem de jovens e reforçam um olhar fetichista e machista no cinema. Algo que poderia já ter sido abolido em produções artísticas e culturais que dão corpo aos aspectos identitários dessas personas. Algo que precisa de um revisionamento urgente, seja na nossa experiência com o cinema contemporâneo, seja revendo filmes de épocas anteriores a esse período.
Mas voltando à personagem Strawberry, cujo nome já é a de uma “estrela pornô”, conforme mencionado no filme, notamos que a jovem não tem qualquer função dentro da narrativa. Ela opera somente como uma falsa conquista do protagonista e também um símbolo sexual para o público masculino. As cenas de sexo em que os personagens interagem nunca parecem ir além da perpectiva fetichista do olhar heterossexual. Tudo nos leva a ideia boba de projeção adolescente do jovem que pode entrar em contato com o filme pelo estímulo que as sequências de sexo podem provocar, pensando aqui no elemento da projeção do espectador com o personagem.
Analisando por esse ponto, Red Rocket me decepcionou na sua abordagem. Pois a mensagem final é dúbia. O longa acaba se atomizando dentro do seu protagonista e consequentemente do tom tóxico que ele carrega, sem contrapor aos excessos e inconsequências que ele mesmo gera para si e para os demais à sua volta.
Além disso, a constante adesão ao estereótipo para compor uma mulher na tela, só me faz ter mais atenção para a composição do feminino nas produções cinematográficas em geral. Uma vez que mesmo diante de filmes independentes e com abordagens alternativas, estas composições pouco originais ainda continuam sendo uma fatia considerável nas decisões finais que os realizadores tomam para si. Porém, esta é uma composição que no fim se revela apenas uma maneira preguiçosa e machista de ilustrar o universo e o olhar feminino no enquadramento da tela do cinema. E o feminino exige muito mais que isso.
Título Original: Red Rocket'
Diretor: Sean Baker
Ano: 2021
País: EUA
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