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SEM RASTROS | UMA OUTRA FORMA ESTAR NO MUNDO


É incrível como a arte consegue atingir a públicos diversos e mostrar realidades distintas. Do mesmo modo, como abre espaço para refletirmos a forma de vida que escolhemos ter. É por isso que obras como 'Na natureza selvagem', 'Livre' e 'Nomadland' chamam atenção por mostrar pessoas que vivem uma vida fora do convencional. Outro filme que não podemos deixar de falar é o 'Sem Rastros' da diretora Debra Granik.


"Sem Rastros'' foi escrito por Granik e Anne Rosellini e tem como base o romance My Abandonment, de Peter Rock. O filme é um drama fascinante que reflete sobre as nuances da vida nas margens da sociedade contemporânea. Na sua abordagem, a obra trata diretamente da sobrevivência e a esperança em um mundo polarizado

Um lugar onde o idealismo pode ter diferentes vertentes interpretativas. Na trama, acompanhamos um pai e filha em suas rotinas incomuns e os desafios para mantê-la.


Will é um veterano da Guerra do Iraque que decidiu sair do sistema social por causa do estresse pós-traumático que sofre. Foi nesse contexto que ele criou sua filha, Tom, dentro de um sistema de sobrevivência em uma grande mata de um parque florestal em Portland, Oregon. O interessante é como Debra articula a reflexão sobre a desestabilização da realidade em que os personagens vivem. Quando ela vai pensar a dimensão do espaço onde a narrativa acontece, decide deslocar pai e filha do lugar de onde eles detém controle sobre quase tudo. E quando ambos têm de enfrentar o mundo exterior que os confronta diretamente, o filme ganha um tom a mais.

Nas primeiras cenas a direção retrata bem esse cenário em que os personagens vivem. A exposição às condições climáticas variadas, a precariedade, a falta de conforto e de segurança são elementos presentes no dia a dia da pequena família. Apesar disso, a parceria entre os dois personagens é muito forte. Essa sincronia é fundamentada no modo como eles dividem as tarefas, os espaços e cuidam um do outro, já que são os dois contra o mundo.


É claro que a precariedade que as condições de vida em que pai e filha levavam eram evidentes, uma vez que toda a sua vivência baseia-se no afastamento radical de qualquer contato com a civilização. Este isolamento não partiu de algo externo ou por estarem inseridos em um cenário quase pós-apocalíptico, mas por escolha própria. Pelo menos foi a que Will sente-se mais confortável em viver depois de tudo o que passou, diferente da jovem Tom, que ainda teria uma vida toda pela frente.


A temática da liberdade envolve o filme como um todo e a direção consegue pautar isso através da forma como os protagonistas são tratados pelo Estado. Ambos são vistos como sem tetos ao invés de serem reconhecidos como pessoas que escolheram viver de uma forma mais sustentável e não conivente com as definições pautadas pelas estruturas sociais. É por isso que quando torturados pelos órgãos estaduais, Will é forçado a incluir-se na vida social através de um emprego mecânico e visitas à igreja.


O trabalho possui imagens incríveis que retratam muito bem a naturalidade dos espaços retratados. É desse modo que o diretor de fotografia Thomasin McKenzie consegue através das imagens transmitir todo um naturalismo na forma como encara as cenas na floresta, a tristeza na rotina cansativa diante da tutela do Estado e todo um caminho que ainda precisa ser trilhado por Tom, que se vê com desejos diferentes do pai.

Através do contato com outras pessoas, a jovem de 13 anos vê uma nova possibilidade de vida que não fosse tão isolada e fechada. Porém seu pai repele o desejo da menina, pois diante de sua condição psicológica e emocional instável, ele não consegue ceder da sua percepção de mundo mesmo que seja para o bem da filha. Esse é o dilema da personagem. Continuar junto de seu pai em uma vida apartada e sem perspectiva ou seguir em busca de uma vida em harmonia com a natureza e com outras pessoas.


Pode parecer uma decisão difícil para uma jovem no início de uma vida, mas, ao longo do filme, percebemos o quanto a moça amadurece ao desapegar-se de antigas crenças. Diferente de seu pai, que segue irredutível em seus ideais. Nisso, entendemos a ambiguidade desta relação, porém desapegada de julgamentos ou lição de moral qualquer.


A problematização sobre o quanto a nossa ideia de liberdade é relativa e repleta de lacunas é uma síntese que o filme nos apresenta. Para pensarmos sobre a vida em comunidade, precisamos muitas vezes balanceamos o entendimento entre tudo aquilo o que é da ordem do eu e do outro. Cada indivíduo é livre para escolher viver a vida que lhe convém, porém sua liberdade não pode barrar a dos outros ao seu redor. E por tratar de questões tão profundas com tanta delicadeza e precisão que "Sem Rastros" é sim uma obra incrível na sua forma e no seu conteúdo.




Título original: Leave No Trace

Direção: Debra Granik

País: Estados Unidos da América

Ano: 2018

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