Hoje em dia há uma variação de obras cinematográficas, diferentes gêneros, estilos e narrativas. E dentro de muitas possibilidades, surgem filmes que surpreendem e instigam justamente por trazer temáticas profundas no que diz respeito ao sujeito contemporâneo. Um bom exemplo é Swallow (2019), primeiro longa-metragem solo do diretor Carlo Mirabella-Davis.
O filme acompanha Hunter (Haley Bennett), uma jovem recém casada com um rapaz de família rica, que tem a tarefa de cuidar de uma enorme casa, e se enquadrar a figura de boa esposa e dona de casa. Seus dias são tediosos e solitários dentro da residência e a falta de autonomia é sufocante. Ao se descobrir grávida, a moça começa a se comportar de modo diferente e passa a sentir apetite por objetos pequenos que existem no ambiente da casa.
Grande parte do roteiro feito por Carlo Mirabella-Davis foi inspirado na vida de sua avó, uma mulher da década de 50 que ficou presa num casamento infeliz. Na época, as mulheres eram obrigadas a seguir os códigos socialmente aceitos. Com isso, sua avó adquiriu um hábito compulsivo por lavar as mãos. E pelo excesso do uso de sabão, acabou sendo internada num hospital psiquiátrico.
A protagonista se encontra no mesmo ciclo de infelicidade e angústias. Para se adequar e não perder a vida de casada, assume uma imagem da mulher dona de casa, simpática, bela, que satisfaz e cuida do marido. Porém, ela é um sujeito contemporâneo e demonstra não ter a aptidão que deseja para as tarefas de casa.
Hunter não é perfeita, apesar de precisar ser para seu marido e sogros. Sua aparência, o lugar onde mora, as roupas, o relacionamento, tudo parece incrível. Mas nos detalhes percebemos que assim como a moça, a casa e o seu casamento não são qualificados como ideais. E por trás das aparências, a protagonista vive uma vida infeliz com um marido abusivo e controlador.
A direção de Mirabella-Davis chama atenção pelo domínio dos elementos fílmicos. O longa possui uma atmosfera misteriosa e toda a mise-en-scene parece ser calculada de acordo com o que o diretor deseja dizer. A direção de arte é alinhada para causar desconforto e uma sensação de insegurança dentro dos espaços da casa, já que esta possui grandes cômodos e janelas de vidro.
A fotografia de Katelin Arizmendi propõe uma estética equilibrada, registrando enfaticamente determinadas texturas e cores. Ela usa close-ups em detalhes importantes, como quando Hunter vai engolir um objeto. Opta pela câmera na mão em certos momentos e usa de pouca profundidade de campo em cenas de conflito ou estresse, sempre de acordo com a ideia narrativa de explorar os estigmas sobre as doenças mentais e as expectativas condicionadas às mulheres.
O roteiro trabalha muito bem a crescente de acontecimentos, e aos poucos revela camadas complexas que pertence a personalidade da protagonista. Com a gravides, Hunter demonstra insegurança quanto a ser mãe. E a compulsão por comer pedaços de metal, bolinhas de gude, pedras, alfinetes ou pilhas, é uma tentativa de recuperar o controle do seu corpo, já que ele é a única coisa que ela possui de verdade.
A revelação do novo hábito da jovem esposa deixa seu marido e sogros preocupados, primeiramente com a saúde do bebê herdeiro, e depois com a da gestante. Logo, começam a questionar a sanidade da jovem. Com a justificativa de desejarem o melhor para ela e para o feto, a levam na terapia, sem garantias de privacidade das informações, e contratam um guarda costas para vigiá-la em casa.
Para mim, a crítica do filme surge a partir do fato do marido não ver a esposa como um ser humano que tem suas complexidades, mas como algo que ele "comprou" e que ele achou que era perfeito para suprir suas necessidades. E aí que o drama da personagem começa. Ou seja, o de não querer mostrar quem ela é por medo de ser julgada ou abandonada.
Essa é uma característica comum na sociedade moderna, onde os relacionamentos são rasos e repentinos, e que as pessoas são enxergadas como produto. De acordo com Valeska Zanello no livro "Saúde mental, gênero e dispositivos", as mulheres se subjetivam na prateleira do amor e se colocam disponíveis para serem escolhidas pelos homens.
Movida pelo desejo de uma vida melhor, Hunter aceita ser subordinada ao casamento, porém ela sabe que se esta vida não lhe proporcionar o que deseja, ela pode optar por deixá-la. E essa certeza é o que define a protagonista, já que ela entende suas angústias e tem consciência da liberdade que merece. Somente ela pode garantir isso a si mesma.
Swallow é uma obra que usa de elementos conhecidos para refletir profundamente sobre os traumas existenciais, o corpo feminino e o lugar da mulher na sociedade. Aborda a falsa idéia da felicidade do matrimônio e a ótica machista que vê e coloca a mulher como objeto. Destacando-se também por conseguir incorporar estas questões dentro da linguagem cinematográfica.
Título: Swallow
Diretor: Carlo Mirabella-Davis
Ano: 2020
País: EUA, França
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