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TITANE | O CORPO NO LIMITE DA CARNE


O cinema é uma arte que proporciona não só um momento de lazer, mas também uma experiência ao espectador pela sua múltiplas possibilidades estéticas. E um dos grandes signos utilizados pela sétima arte é o corpo. Esse elemento vem sendo estudado e explorado de diversas maneiras justamente pelo seu potencial expressivo e simbólico. Há diretores que conseguem explorar em seus trabalhos estas potencialidades através da performance corporal. Um grande exemplo é o filme “Titane”, dirigido por Julia Ducournau e que ganhou a Palma de Ouro como melhor filme no Festival de Cannes em 2021.


Vencedor da Palma de Ouro como melhor filme no Festival de Cannes em 2021, “Titane” é um filme de horror visceral que explora os limites do corpo humano. A obra também possui aspectos do humor negro e do drama sobre figuras em estado psicológico fragilizado. A narrativa é, antes de tudo, fantástica e com elementos imaginativos que incluem uma mulher, um carro e um homem solitário. No filme acompanhamos Alexia (Agathe Rousselle), uma dançarina erótica que tem um instinto assassino, uma atração por carros e possui uma placa de titânio na cabeça devido a um acidente na infância. Depois de cometer uma série de homicídios, ela foge da polícia e assume a identidade de um jovem desaparecido, filho do bombeiro Vincent (Vincent Lindon). Será que tem como complicar ainda mais? Sim! Alexia está grávida, fruto de uma relação bizarra com um veículo. À medida que o tempo passa, sua barriga cresce e seu corpo se torna uma bomba-relógio pronta para expor seu segredo.


A direção de fotografia, liderada por Ruben Impens, consegue imprimir um aspecto sombrio e misterioso da obra, ao mesmo tempo que adiciona características da arte pop através do uso do neon e de cores intensas. A utilização da luz e da sombra ajuda nessa construção, assim como o design de produção adiciona um tom alegórico ao trabalho. Os grafismos das imagens exploradas no longa possuem um traço de exagero, mas entendemos que eles fazem parte da estética adotada pela diretora, se alinhando à proposta do trabalho na sua totalidade.


Os elementos da cultura pop e do horror estão em evidência, já que o corpo é um fator chave neste trabalho, podendo ele ser um detonador de prazer ou de dor. A direção explora muito bem a transformação e a degeneração do corpo como gerador dessa estranheza e medo. Esse aspecto da corporeidade da protagonista é testada até seu limite e o resultado não poderia ser diferente.

Mas é interessante destacar que existem dois corpos em evidência, o da protagonista e o de Vincent. Um feminino e outro masculino. Ambos carregam nuances interessantes pois são eles que dinamizam, desenvolvem e incorporam o grande corpo que é o filme. Pensando na estrutura física feminina ilustrada pela jovem dançarina, percebemos uma violência externa que diante de um ambiente agressivo, tende a se defender da mesma forma, responder a partir de uma dinâmica de espelhamento. Porém, ao simular o corpo masculino, ela experiencia hábitos ligados a este universo e a violência não a atinge no mesmo grau de antes.

Na primeira metade do filme, entramos no ambiente da incomum jovem e seu comportamento estranho, algo que já lhe é característico desde a infância. O prólogo do filme apresenta isso muito bem. Alexia simplesmente não consegue se encaixar em nenhuma tribo. E por ela não se enquadrar em nenhum perfil pré-definido, ficamos meio sem saber ao certo quem ela. Este é um aspecto bem utilizado no filme já que proporciona à Ducournau um leque de tonalidades à protagonista, uma vez que, por mais que tenha um corpo feminino, não se adequa a uma ordem binária de gênero.


Para além da violência e da intensidade, a diretora também se preocupa em mostrar seus personagens assombrados pelas limitações de seus próprios corpos. Com o desejo de ultrapassar esta barreira, eles se lançam contra sua natureza física e vão ao limite do que podem suportar na materialidade que o elemento físico aporta. Não é à toa que o filme traga um olhar próprio sobre o corpóreo e o maquínico traçando um confronto entre eles.

Mas o corpo é diferente da máquina. A biotecnologia possui uma visão que privilegia o mecanismo corporal e que é comprometido pelo sujeito, frágil e cheio de engendramentos. bastante influenciado pelo meio que o cerca, a corporeidade muitas vezes não tem o controle de si, diferentemente do caráter de constância percebidos nas estruturas mecanizadas. E muitos avanços tecnológicos surgem como forma de amenizar as limitações daquela estrutura instável. Este pensamento está inserido no filme pela figura de Alexia e posteriormente da existência do feto que ela carrega no seu ventre.


A protagonista tem sua estrutura física modificada de muitas formas ao longo da narrativa. Diante das mudanças por causa da gravidês, na qual ela renega, seu corpo vira um inimigo do qual não pode escapar. Em muitos momentos os corpos no filme parecem adquirir uma materialidade plástica, capaz de ser moldada e estruturada. Mas ao mesmo tempo, Ducournau explora muito precisamente as fragilidades dos personagens e o que eles enfrentam para sobreviver, assim, adicionando sensibilidade à obra.


Aliado a isso, o tom surrealista e fantástico devem ser considerados já que a intenção não é induzir um sentido para tudo o que for assistido, mas sim viver uma experiência proporcionada pela carga performática dos corpos em cena. A performance neste filme se encontra nas forças corporais e sua atividade constante de gerar conexões ou choques. Este movimento atualiza o potencial de cada um desses corpos gerando transformações para cada um deles em suas distintas escalas.


De fato, os personagens de Titane são tão inconstantes que não permanecem os mesmos do início ao fim da trama. Eles se alteram fisica e emocionalmente, assim como quem assiste também pode vir a modificar-se dentro desta experiência fílmica. Principalmente quando consideramos não apenas o seu potencial performático através dos corpos na tela, mas também do estranhamento gerado no espectador. E é por seu tom ousado e provocativo que "Titane" pode ser considerado uma obra única.



Título original: Titane

Direção: Julia Ducournau

Ano: 2021

País: França. Bélgica

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